O mundo muda, educadores!

Marcília Rosa Periotto

Universidade Estadual de Maringá-DFE

Uma das primeiras lições que se aprende no estudo da História como teoria é que não há interrupções no movimento da história. As grandes transformações que dão ao mundo uma nova forma de ser e existir acabam por abalar as certezas estabelecidas e impressões desde sempre firmadas de que nada muda, sempre foi assim e assim será.  Em parte, essas impressões são verdadeiras na medida em que nosso campo visual enxerga com limpidez até certo ponto, limitando nossas percepções à natureza intrínseca da nossa organicidade. Ir além, enxergar além, no caso de compreensão do mundo, exige um conhecimento que avance sobre os embaraços de uma relação social versada nas aparências e sedimentada na crença de que as diferenças sociais imperam desde que o mundo é mundo. E este conhecimento necessariamente não exclui aquele dado pela simplicidade da vida e pontuado por uma existência sem academicismo, mas forjado no entendimento da vida como ela se apresenta, sem a ilusão do que deveria ser oriunda do sopro divino ou do beneplácito das santidades. 

Não há nada mais difícil a um professor, a um educador, ciente desse processo, de repassar a quem aprende esta dinâmica. Como falar de transformação histórica quando se entende a transformação apenas em seu caráter tecnológico? Da velha máquina de escrever(2) ao computador, do livro físico ao livro em rede, da infinidade de aparatos industriais que facilitam a vida do professor? Há um mundo em mudança, exigindo novas técnicas, novos materiais e novas posturas frente aos desafios que estão sendo cotidianamente postos ao fazer educacional. Entretanto, todo esse novo é parte de uma ação antípoda ao velho social a que nos acostumamos e temos como eterno e que ainda mantém o homem como o centro do processo. 

Pedro de Alcântara(3), ao analisar o processo histórico que envolve a educação, sabidamente definiu as angústias de todos nós envolvidos: o que ensinar se ainda somos velhos e não sabemos o novo em processo de construção? Diz ele que “só se ensina o que se sabe, nem mais, nem menos”. A história que escrevemos é que irá definir os novos conteúdos, estes, como partes da prática social, serão categorizados como os novos conhecimentos. Dessa forma, almejamos o novo, sem nem ainda sabermos com clareza o que ele poderá vir a ser. Enquanto isso, introduzimos novos elementos na prática educacional para que auxiliem na compreensão do mundo e alterem os olhares das novas gerações sobre a sentida necessidade de mudanças profundas na forma social de vida.   

Nesse campo específico, verificam-se atuações corajosas de educadores e intelectuais que lutam para salvar o pouco que tem restado do avanço destruidor dos mercadores da educação que a veem como geradora de lucros, rechaçando o conhecimento humanístico. Para os  empresários da educação, basta aos estudantes apenas ver a uva sem ao menos refletir os caminhos que transita até chegar à nossa mesa e comê-la sem se dar conta que é fruto do trabalho e não presente da natureza. Reflexão sobre as práticas sociais é sinônimo de comunista no sentido ideológico da palavra, pensar qualitativamente é pauta proibida nas grades curriculares do fascismo, defender direitos humanos leva o indivíduo ser taxado de “esquerdinha”, um alvo constante aos que aniquilam a vida como solução para a tomada do poder e da propriedade material.

Entretanto, este processo não é atual, vem de longe e é aplicado por quem acredita que uma “nova educação” deveria suceder a “velha educação”. Vi de perto este fenômeno e tive a oportunidade, depois, de verificar que a “nova proposta”, na qual os velhos clássicos não tinham mais utilidade, havia nascido também velha, na medida em que retirava o caldo humanístico da reflexão substituindo-o por práticas exigidas pelo mercado da educação, transformando professores em executores de técnicas prescritas no receituário neoliberal e rechaçando o conhecimento intelectual indispensável a uma formação igual por parte dos alunos, enfim, se estabelecia a indigência intelecto-cultural com o rótulo de modernidade.   

As lacunas teóricas da retirada dos clássicos são reveladas da pior maneira possível na atualidade, haja vista que, sem um cuidado com os saberes anteriores e a compreensão que expressam momentos históricos distintos, acabou por dar passaporte à inoculação de ideias e práticas que atentam contra a continuidade da vida. Hoje não é somente o ser individual que se encontra em perigo, mas a saúde e permanência do planeta, casa universal. 

Enfrentar as práticas que aspiram manter a velha sociedade é tarefa vital à compreensão de que os homens são capazes de atender as necessidades cruciais da vida, para todos e com sobras. As máquinas que criaram como forma de alargar a produção e diminuir o concurso do trabalho humano, ou barateá-lo, substituem os braços humanos e produzem em escala ampliada, provocando as crises de superprodução, fato que confirma a riqueza aumentada, porém acessível a uma camada de indivíduos em estupenda minoria. 

Desta forma, a luta por uma sociedade em que a Educação seja, de fato, um elemento expansivo de reflexões que encaminhem à compreensão do homem como produto da história, feita por eles mesmos, é compromisso cotidiano e requer persistência e alta dose de combatividade. Entender as estratégias estabelecidas no contexto de luta contra as forças progressistas e revelá-las, torna imperativo o ato de reflexão continuada, apurando o olhar nas contradições decorrentes da alta concentração da riqueza via rentismo e na aplicação de medidas que desregulamentam as leis que protegem o trabalhador e garantem direitos é uma forma de oposição à ausência de conteúdo, mas também um meio de expandi-lo nas salas de aula.

Na contramão da onda atual de mudanças dos conteúdos programáticos e posturas exigidas ao alunado frente às necessidades do capitalismo e seus próceres, torna-se urgente a luta dos educadores progressistas, e não somente eles, contra a naturalização de uma sociedade já tornada, historicamente, um ônus para a vida social e mais ainda, perigosa à vida do planeta, na medida que a destruição ambiental atua de forma prejudicial e peremptória nas camadas mais indefesas da sociedade. A pobreza não se encontra tão-só na falta de postos de trabalho, na uberização de camadas consideráveis de egressos do ensino superior, na falta de água tratada, no acesso à energia elétrica e esgoto, etc., mas na organização ainda que tardia dos que sofrem as agruras de uma sociedade concentradora de renda e excludente de possibilidades para a maioria da população. 

 

Sobre a autora

Graduação em Pedagogia na Universidade Estadual de Maringá, mestrado em Educação na Universidade Federal de São Carlos, doutorado em Educação na Universidade Estadual de Campinas e pós-doutorado na Universidade Federal de Minas Gerais. É professora não-titular da Universidade Estadual de Maringá. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em História da Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: educação e imprensa, educação feminina, educação e escravidão.

Notas

(1) CAMÕES, Luís Vaz de. Os Lusíadas de Luís Camões. Direção Literária Dr. Álvaro Júlio da Costa Pimpão. Texto proveniente de: A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo Permitido o uso apenas para fins educacionais. Texto-base digitalizado por: FCCN – Fundação para a Computação Científica Nacional (http://www.fccn.pt) IBL – Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro (http://www.ibl.pt) Disponível em: http://web.rccn.net/camoes/camoes/index.html. Referência ao soneto 092 onde Camões canta sobre a transitoriedade da vida –“Mudam se os tempos, mudam se as vontades, muda se o ser, muda se a confiança; todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades (…).

(2) Referência ao capítulo 2, O Sentido do Passado, escrito e publicado por Eric Hobsbawm no livro Sobre a História- Ensaios, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, p.22.

(3) FIGUEIRA, Pedro de Alcântara. A educação de um ponto de vista histórico. In: Intermeio. Campo Grande: UFMS, 1995.


Imagem de destaque: Galeria de Imagens

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