O Big dos Bigs

Gustavo Neves 

A arte imita a vida ou a vida imita a arte? O questionamento que abre nossa conversa, repercute muito no que podemos chamar de auge (até agora) da pandemia. Escancara o fascínio proporcionado pela cultura dos “reality shows” e de algum modo, todo este contexto justifica que o assunto esteja tão presente nos lares brasileiros. No ápice do drama experimentado pela saúde pública, depois de um ano mergulhados na quarentena, fica evidente que ainda não podemos baixar a guarda ou diminuir os cuidados para evitar a contaminação pelo novo Coronavírus. Mas, também é verdade que os assuntos envolvendo gráficos de médias móveis e leitos de UTI, tenham alcançado a exaustão. Por outro lado o “Big Brother Brasil”, é hoje uma das poucas janelas em que o único assunto abordado não seja o combate à pandemia. Antes que você pare de ler porque “não se interessa” pelo BBB, programa exibido na TV Globo e que alcançou sua vigésima primeira edição em 2021, adianto que serão abertos alguns parênteses que não tenho a menor intenção de fechar. Pelo contrário, seria ainda mais adequado que essas discussões extrapolassem as rodas de conversas dos espectadores e alcançassem um necessário e amplo debate a partir das improváveis leituras que possam ser feitas sobre o show de entretenimento.

Para começar, o formato do Big Brother (patenteado pela holandesa Endemol), se baseia numa obra publicada originalmente ainda em 1949. O livro denominado “1984” trata de uma distopia futurista e é um dos romances mais influentes dos séculos XX e XXI. Escrito por George Orwell, foi lançado poucos meses antes de sua morte. Na obra, Winston (o herói), vive aprisionado num regime totalitarista, fruto de uma sociedade permanentemente vigiada pelo Estado. Tudo é feito coletivamente, mas cada um existe na solidão.  Ninguém escapa aos olhos vigilantes do “Grande Irmão”, a personificação de um poder sádico, absurdamente cruel e esvaziado de sentido histórico. 

Em 1949, a obra preconizava um futuro audaciosamente próximo e essencialmente pavoroso. O personagem central, faria estrondoso sucesso por desafiar a ditadura, escondida na sombra de uma autoridade que existe, mas não se pode ver. Essa fórmula atrairia leitores à esquerda e à direita do espectro político. Outro ponto que abre mais espaço para a reflexão, seria a introdução da “Novafala” uma controversa política definida pelo Partido, para renomear as coisas, as instituições e o mundo, manipulando arbitrariamente a realidade, revelando os perigos envoltos pelos excessos delirantes (mas perfeitamente possíveis) de qualquer forma de poder absoluto, do qual não se possa contrapor ou questionar. Se estivesse vivo, talvez Orwell se surpreendesse com o quanto nossa realidade se espelhou em seu romance. Democracias em todo o mundo sofrem a afronésia populista de governantes cínicos e insensíveis, que simplesmente ignoram as reais e urgentes demandas de seus povos. 

Reunir jovens de diferentes realidades e trancá-los numa casa, permitindo que sejam julgados por seus atos por um público que diversas vezes repete estes mesmos atos em suas vidas particulares, pode parecer uma ideia pobre e sem razão de ser. Mas a verdade é que a proposta evoluiu ao longo dos anos e hoje ultrapassa a linha da simples distração. O programa se transformou num tipo de “laboratório” em que importantes assuntos podem ser abordados e a observação abre caminho para uma intensa revisão. Esta temporada trouxe em seus ingredientes, pessoas que tinham (ou acreditavam ter) envergadura para sustentar grandes bandeiras. Boa parte delas já foram eliminadas do confinamento e outras que ainda habitam a casa, já não gozam de prestígio ou do acolhimento popular. No entanto, mesmo que acidentalmente, como a exibição tem um alcance incrível, não há que se questionar sobre suas contribuições para a abordagem de alguns temas tidos como “difíceis” e que terminaram ganhando visibilidade e abriram caminho para a argumentação. A gama é extensa e com pouco tempo no ar, a atração deste ano já trouxe à tona pautas complexas como doenças/transtornos mentais, racismo, machismo, cultura do cancelamento, relacionamentos abusivos e exclusão. A face mais interessante é que a proposta não funciona de modo unilateral. A grande massa, para exercer bem o seu “papel” de juiz (que decide quem fica e quem sai do programa), precisa se informar sobre os assuntos expostos, de modo a embasar ainda que minimamente suas decisões e eventualmente convencer ao máximo de pessoas possível. E aí mora o segredo. As pessoas estão se informando! 

Não é novidade que a TV brasileira é uma importante ferramenta que atua diuturnamente na manutenção da desigualdade no Brasil, reforçando estereótipos, avalizando abusos e não raramente faturando com o caos. Porém, a própria sociedade se descobriu igualmente poderosa e se manifesta de forma independente. Se quisermos uma sociedade mais igual (em direitos) e ao mesmo tempo mais plural (nas pessoas que a compõem), haveremos de nos habituar de ver cada vez mais pretos questionando os sistemas racistas, gays questionando padrões, mulheres lutando por mais vez e voz e toda sorte de pessoas que ainda estão na margem, mas não mais se calarão diante dos abusos. Se é a vida que se inspira na arte, não sei dizer. Fato é que as pessoas de um modo geral, tem buscado mais informações sobre assuntos que outrora eram tabus. E não existe modo mais eficaz de se quebrar os preconceitos do que obtendo informação e conhecimento. 

Para saber mais:

ORWELL, George. 1984. Tradução de Heloisa Jahn e Alexandre Hubner. Companhia das Letras: SP, 2009.


Imagem de destaque: jenipur13 / Flickr

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