O balseiro, o poeta e a máquina de escrever – Parte II

Ivane Laurete Perotti

_ Professor!? Acode aqui!

João alinhou o aperto dos passos. A mata cerrava o chamado.  Reconhecia a urgência.

_ O que se passa?

Às paredes de araucária somavam-se os arbustos nativos. Samambaias rendando as passagens. Correndo verde aos pés dos xaxins-bugio. Travara-se a extinção. Espalhavam-se cuidados pela região. Floresta e fauna mereciam respeito. Pelo menos para alguns.

O professor enxergou a pelagem acinzentada. Um baio. Avermelhado. Olhos cravados em massa densa. Brilhante. Mais de setenta quilos, com certeza.  Agitado. Apanhado criminosamente em armadilha clandestina. Toada de homens vis. Gananciosos.

_ Professor João! Olha a maldade! – dois jovens tentavam soltar o puma.  Luta para retirar o felino da arapuca. Construída em ferro e corda, machucava o animal a cada tentativa de soltar-se. O puma, ou onça-pintada, não ruge. O quarto maior felino do mundo produz um som próximo ao miado do gato doméstico. Ali, entre folhas e raízes, o som arrastava-se em dor. Indignação. Pedido de socorro. Misericórdia.

O professor-poeta observou a armadilha. Não eram comuns na região. Mas apareciam, de quando em quando. Burlavam a proteção. Crimes contra os animais silvestres. Apesar de todas as campanhas ambientais, a proteção da fauna e da flora no Brasil careciam da efetiva aplicação das leis.

_ Vamos precisar de ajuda. Vou chamar a reserva. Não saiam daqui! – disse o professor enquanto rumava de volta para casa. Sabia que, em pouquíssimo tempo, os funcionários do Parque Estadual do Rio Canoas estariam ali. Tinham materiais e conhecimento para cuidar do puma. Ficaria bem. Mas fora por pouco. Os caçadores e traficantes de animais deveriam estar por perto também. Eram perigosos na ganância e inconsciência.

Puma salvo. Aula da tarde. Professor tocado pelo último acontecimento. Ficara-lhe impregnado na retina da alma o olhar desesperado do grande puma. Aturdido. Tolhido. Ciente do perigo. Entre a vida e a sorte. Sobravam considerações sobre a prática criminosa. Desejava recortar o acontecido para outras leituras. A tutela da natureza deveria partir das veias. Descer os cânions. Subir as rochas. Invadir o mapa físico. Sair da toca. Das frases mortas. Precisava criar braços de trepadeira. Cerca-viva.  Proteção.  Idealizava modos de ver o acontecido, acontecendo. Correnteza de pensamentos e intenções. Registrou os livros novos. Organizou a sala. Passou por Lorca: “Verde que te quero verde…”; tocou “As Rosas”, saudosas rosas, de Machado de Assis; entoou as grandiosas metáforas de Bilac; sentiu o “sem sentir” do “leque de uma palmeira” drummondiana; a virilidade estética de Espanca; e atravessou, emocionado, Alberto Caieiro. A Royal em repouso.  Imprimiu punhos às páginas. Entre figuras e imagens, o professor transcreveu à mão, vários poemas. Da natureza do homem, do verde, das coisas da natureza, da natureza das coisas. Acreditava importante reconhecer, reconhecer-se e se dar a conhecer. Na poesia, muitas ferramentas para a escavação. Subjetiva. Ardente. Febril.

No meio da tarde, enquanto o sol insistia em aplacar o frio, os estudantes e o professor abraçaram a floresta. Poemas em riste. A página triste da manhã agora encimava o puma envolto em corações. Pequenos. Grandes. Vermelhos. Amarelos. Atravessados por palavras de ordem. Lápis de cera. Canetas coloridas. Poemas autorais. Vozes em rascunhos de discurso interno. Chamadas à consciência. Robusta aula de poetar o mundo. Inegável método de leitura. Leituras. Parcerias.

Quem percebeu, ouviu. A natureza respondia em conexão direta. O Rio Canoas deslizava em suave vazão. As araucárias cantando, lá do alto, uma ode aos séculos. A Canela-sassafrás odorando o vento. Os animais em rogo. Era a Mata Atlântica em reverente silêncio. Agradecida. Esperançosa. Poemática enunciação.

Antes que o sinal de encerramento das atividades tocasse, as crianças deram com o balseiro. Esbaforido. Gesticulando sobre a pequena elevação de terra. Atracara a balsa e procurava o professor.

_ João? João?

As cinco turmas receberam o chamado. E o dono da balsa. Correram ao encontro do homem mais conhecido na região. Gostavam de fazer fotografias junto a ele. De preferência, sobre a balsa que lhes carregava em vida e na morte.

_ João…

CONTINUA.


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