O abismo intransponível da diferença sexual: pessoas trans e esportes

Eric Seger¹

Nos últimos anos, polêmicas envolvendo a participação de pessoas trans no esporte de alto rendimento tomaram as manchetes e acenderam um debate público sobre os parâmetros da divisão do esporte. As duas principais premissas desta discussão são: a) homens (cis) têm vantagens físicas sobre mulheres (cis), b) pessoas trans são pessoas que mudam seu perfil hormonal fazendo alterações corporais, mas não se sabe se é o suficiente para alterar essas supostas vantagens físicas. 

O Comitê Olímpico Internacional realizou um consenso entre especialistas que declarou que sim, pessoas trans que fazem hormonização durante 2 anos estão em condições equivalentes às de pessoas cis (cis = pessoas que não são trans). Do outro lado, algumas vozes clamam que não, jamais será possível que uma pessoa que foi designada como homem quando nasceu altere essa vantagem física permanente sobre pessoas que foram designadas como mulheres. Este posicionamento não encontra, até então, nenhum embasamento científico, considerando estudos envolvendo pessoas trans e desempenho esportivo.

Embora no senso comum pareça muito estável e rígido enunciar os pilares e os limites das diferenças entre os sexos, várias e vários cientistas debruçaram-se sobre as inconsistências de alguns desses enunciados. Em relação ao cérebro, Joel e Vikhanski analisaram as tentativas de provar a suposição de que o cérebro masculino seria mais inteligente do que o cérebro feminino. Estas tentativas apresentaram erros na sua lógica que, na época, passavam despercebidos de tão forte que era essa crença, mesmo sem provas. No campo da educação física, é necessário fazer o mesmo teste destas premissas, retirando-se a certeza pré-discursiva que enviesa a possibilidade de ver além do binário sexual dimórfico e hierárquico.

Se no esporte de alto rendimento parece coerente buscar saber com alta precisão o efeito de variáveis como hormônios, músculos e ossos, no campo do esporte amador e da educação física escolar, o jogo muda. Outras variáveis têm influência considerável: pertencimentos de classe, raça, bairro, família, busca pela própria identidade, relações de poder, normatização, etc. O desempenho do esporte escolar vai muito além de resultados de competição. Nesse contexto, o desempenho objetiva nutrir e formar a identidade social de jovens, que assim podem se reconhecer como humanos no mundo. 

O direito de poder entender-se dentro de uma identidade socialmente inteligível deve ser garantido a todas as pessoas, e isso envolve saber lidar com essa complexidade dentro da educação escolar na educação física. É necessário poder fazer-se menino, menina ou menine dentro das culturas corporais de movimento e dos esportes, levando em consideração todas essas outras variáveis que estão em jogo durante o desenvolvimento. Para isso, torna-se essencial discutir o modelo de dois sexos utilizado nas ciências dos esportes.

Embora o esporte recreativo e escolar tenha características diferentes do alto rendimento, quando estas discussões aparecem no nível internacional, os argumentos são espelhados e estendidos na mesma proporção. Isso significa que a noção da barreira intransponível entre corpos sexuados é refletida para políticas públicas de vários níveis como, por exemplo, separar a aula de educação física por sexo/gênero. Assim, as possibilidades de materialização de existências que não sejam cisgeneras (e heterossexuais) no campo esportivo são anuladas. 

Para produzir um futuro em que as categorias de corpos não sejam mais reduzidas a somente duas e com um abismo intransponível entre elas, definindo uma hierarquia fixa serão necessárias novas categorias. Mas sem fazer dessas novas categorias guetos para “os diferentes”, onde as categorias “homem” e “mulher” permanecem inalteradas e presumidamente cisgêneras, como se isso fosse o único pressuposto de “natureza”. A própria definição de “homem” e de “mulher” precisará ser intensamente reformulada.

Essa renovação analítica não significa ignorar ou apagar o conhecimento produzido até agora, ou afirmar que não existem consequências físicas de acordo com características hormonais. Esta proposta de novo olhar amplia as possibilidades de compreensão sobre os corpos, retirando um viés que já apresenta conclusões antes mesmo das evidências, assim como nos estudos sobre o cérebro em que pesquisas que refutavam a hipótese do cérebro masculino ser mais inteligentes eram descartadas como erradas.

Para calibrar esse olhar que associa características biológicas ao gênero surge o conceito de Cisnormatividade, trabalhado pelas autoras Viviane Vergueiro, Megg Rayara de Oliveira, Beatriz Bagagli, Jaqueline Gomes de Jesus, Sofia Fávero e também na minha dissertação de mestrado intitulada “Pessoas Trans no Esporte: Os Jogos da Cisnormatividade”. A compreensão histórica, cultural e política de como é formado o ideal de sexo-gênero-raça dentro de uma normatização colonial é fundamental para potencializar as vozes que foram silenciadas nesses processos de colonização.

Com essas ferramentas, é possível aprimorar a discussão para além daquelas premissas básicas, tendo como horizonte um ideal muito além do fazer adaptações para encaixar pessoas em categorias que já não funcionam e que representam um ideal colonial violento para diversas existências como: pessoas trans, povos originários, pessoas negras e todes que não se encaixam nesse ideal. Mas enquanto não se reformula tudo isso, uma coisa é certa: não existe razão para impedir pessoas trans de participar de esportes. A maior vantagem esportiva até o momento é ser cis.

 

1 – Eric Seger de Camargo – Possui graduação em Educação Física pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Mestrado em Educação pela mesma Universidade. 

 

Para saber mais
Joel, D; Vikhanski, L. 2019. Gender Mosaic: Beyond the Myth of the Male and Female Brain. 1ª Edição, Editora Little Brown Spark, Nova York. 

Seger, Eric. Pessoas Trans no Esporte: Os jogos da Cisnormatividade. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Educação – UFRGS, 2020.


Imagem de destaque: Lorie Shaull

 

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