Morreu de onça

Ivane Laurete Perotti

De morte morrida, morria-se. De morte matada, matavam. De onça, poucos. Sem onça, muitos. Notas e bichos. Dentes e ricos. Esbulho. 

Para Porvinu, nascido e morrido no mato, a onça comia de boca. Furtava o milho da criação. Talhava o leite das vacas magras. Bezerrava úberes murchos. Lambia o osso do gado fraquinho, parado, paradinho atrás da cerca desfiada. Tudo dentro da lei. Lei de compra e renda. Venda nos olhos da justiça social. 

Porvinu arrematava gramíneas de resistência. Quase ervas-daninhas. Arrancava-as, vez e outra. A esposa, Dona Argemira, replantava: _ Sossega, homi! Vai dá certu! Uma hora dá! Arresistia no peito do braço. Roceiro de pai, mãe e herança de trabalho. Muito trabalho em terra cansada. Filhos miúdos. Metade de um com as vingas do outro. Desconheciam a onça pintada. A do desenho. Alfabetizados nas folhas do tempo, escreviam nuvens. Brincavam sapos.  Alumiavam a vida da parca roça. Desconheciam vida que não tratasse do pouco e do sem. Cem de duas onças. Marca d’água sem garoupa. Garupa boa era o lombo do Jericó quando soltava o tranco. Êita! Jegue manco. Passeio seguro da criançada.  À venda há muitos anos. Ninguém comprava. Ninguém queria. Velho e cansado, ficava ali. Solto para ir e vir. Não ia. Assustava-se por pouco. Mais do que o dono, Porvinu, que se dizia assustado com o preço das coisas. Com o sem preço das coisas da roça. Despreço. Desapreço. Desprezo. Custo de corte. Paga miserável. Entregava o leite por centavos chucros. O milho, não valia as sementes. O tomate não se vendia. Coisas da roça não tinham aparenças de boa venda. Aprecisava investi em adubo e maquinário. Aprecisava! Terra pouca. Sem garantia. Já não rendia como antigamente.

_ Ô pai… a mãe disse que nóis não pode i inté as brenha…

_ Prá modiquê?

_ Di onça!

_ Arra! É di ôtra onça qui cês devi di tê medo. Podi i! Traiz umas vara caída das barriguda! Leva o Jericó prá arrastá.

_ Ô pai, ele tá drumino im pé!

_ Acorda!

Porvinu ficou admirando o filho do meio. Molecote, brincalhão, mas cheio de responsabilidade. Filhos bão! Bão mesmo. E não é que o Jericó gostou da ideia de entrar na pequena mata? Conhecia a trilha. Pouco mais de umas pernadas. Estava velho, mas o fresco da mata convidava a levar o cangote suarento. Burrico esperto.

_ Porvinu! Ô, Porvinu!

_ Quequi foi Arge? Tô ino! Tô ino, muié!

Argemira, Mira, para os íntimos, Arge para o marido, parecia preocupada. Quase mais do que preocupada. 

_ Anda, hômi! Tem carro vino prá cá. Lá das banda do Seu Artemísio.

_ E é? Será genti da cidade? Arguma precisão?

_ Sei não! Mior se perpará!

_ Perparado eu tô, Arge. Eu tô… nóis dois sabe qui tô!

_ Num gostu quando carro invereda pressis ladu. Não podi sê o vizinhu… mal das canela feito nóis!

O carro levantou poeira pelo caminho. Na seca, uma vala com capim que subia até onde deus deixasse. Nas chuvas, um buraco traiçoeiro. Marcas do último trator que entrara ali. Dinheiro desperdiçado. Entrara para levar milho. Saíra com a última leiteira do sítio. Meia dúzia das amarelinhas. Um saco de milho por bem menos. A vaca negava leite. Precisava de remédios, de ração. Melhor vender enquanto respirava. O carro parou de um jeito que Argemira recriminou. Quase em cima do marido. Como se aquele pátio recém-varrido não tivesse espaço suficiente. Dois homens desceram do carro. Roupa da cidade. Uns papéis na mão. Na porta do carro, Argemira quase conseguira ler o escrito: P+e… não! P+r+f… não! Difícil. Melhor chamar um dos meninos que conhecera a escola. Ara! Estavam para o mato! Bem que dissera para não irem lá. Mas o Porvinu tinha vento nas ideias. Nem o Jericó ficara para trás. Ara!

_ Bas tarde! – o Porvinu fechava a cara. Sinal de poucos amigos. Mas os dois homens pareceram ignorar o cumprimento seco e rápido. Rápidos também explicaram que estavam ali a mando da Prefeitura da localidade. E, constava nos livros que, bem… que dali daquelas redondezas, ninguém pagava imposto. Então, era a hora de fazer um levantamento das atividades do sítio e…

O casal trocou olhares por debaixo das pálpebras ressequidas.

_ Imposto, seu moço? Prá modiquê?

Da venda do leite. Do plantio do milho. Das galinhas. Dos ovos e… isso tudo que gerava compra e venda. Lucros, né seu Porvino?

_ Ô, rapaiz! Ocê tem zóio prá vê…intão olhi! Olhi bem! Muito bem oiado… – a voz repentinamente espichada do marido surpreendeu Argemira. O que se passava? 

_ Óia ao seu redó i veja se nóis tá tendo lucru aqui. Óia bem, prá modique nóis dois si intendê! Óia! 

Os braços abertos de Porvinu tocavam o pequeno e exaurido território. 

_ Óia! Tudo varadu di miséria! As galinha não ponham faiz tempu. As menu véia a genti cumeu na sopa cum batata. Os leiti, os leitero interrô os tarro. Modi centavos. Centavus! A letera foi no tratô, seu moço. As pranta percisam di adubo. Adubu percisa di  onça. Onça aqui num entra…e ocês qué impostu.

Cheios de amabilidades, os moços bem-vestidos puxaram contas, papéis e algumas letras que Porvinu nunca leu. Sim! A terra minguada tinha ficado no mesmo lugar. Lugar dos avós. Da mãe e do pai. Dele e, agora, dos filhos. Com a diferença que os irmãos haviam morrido de doença de Chagas, de lombriga, de paneumoninha e sobrara ele. Até os pais morrerem de onça!

_ De onça? Não sabíamos que aqui ainda existiam onças!?

_ Não inxestim, seu moço! É dissu qui nóis tá falano…


Imagem de destaque: Galeria de Imagens

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