Memórias de um conflito, em conflito – anestesias do esquecimento?

Ivane Perotti

Aranhas fraudulentas estendiam sedas. Armadilhas. Redes neurais.  Reverberava o diálogo entre os fermentos da imaginação e as imagens de uma memória. Viva. Quente. Pegajosa como a rapa do melaço. Tão sóbria quanto o limiar de uma tempestade. Pulsante como a jugular de um condenado.

– É coisa do passado. Esqueça!

– Não quero lembrar. Mas… está aqui! Não se vai.

– Não existe mais. Só na sua cabeça.

– Existe, sim! Não esqueço, mesmo quando me esforço. Sem descanso!

– Só o presente tem sentido…

– O que aconteceu me afeta, todos os dias.

A conversa transcorria na moldura de olhares pesarosos. Suspiros abertos. Feridas sem cura. Bocas de amealhar. O dia ameaçava tormentas. Emoções reprimidas. À espreita. Entumecidas pelo desgosto. De um lado, a seda aracnídea cortava as pontas do arrependimento. Diminuía a pressão. Do outro, a mesma composição de trajetos revigorava o fato. Real. Total. Cena e cores. Gemidos. Flagrante. 

– Quando penso em Dom Casmurro

– Nem vem! Misturar realidade e ficção não funciona. Por que isso agora?

– Sou o Bentinho!

– Está me chamando de Capitu? Só o que falta! 

– Estou falando sobre como me sinto. A cena não me sai da …

– Já lhe disse mil vezes que não foi bem assim! Você viu o que queria ver!

– Como é possível? Vi o que vi!

– Você é uma mulher ciumenta. Sempre foi!

– Ela era a minha irmã!

– Ela é a sua irmã!

Era! Não aceito esse tipo de …de…

– Deixe isso no passado, pelamordedeus!

– Olho para você e…  o passado volta. Aqui, agora!

– Você está louca! Isso não foi importante, já disse!

– Queria apagar essa memória. Mas nada mudaria o fato. Está aqui … – o gesto faz a mão rocar o peito com demasiada força. Unhas de ferro. Mão de pesadelo.

Fia amarga rever a cena que se repete. Repete. Elástica e resistente, atravessa as paredes do tempo. Cola turnos. Salta os abismos do pretérito. Perfeito. Imperfeito. Obedece à prerrogativa belicosa, com ou sem manutenção. Algumas memórias não descamam. Recriam camadas sobre camadas. Imperiosas. Fermentam. Levedura marinada por emoções. Conceitos. Crenças. Costumes. Mas, Duto e Fia falavam de lugares diferentes. Ambos professores de Literatura Brasileira no Ensino Médio, dividiam um casamento com páginas marcadas. Ele, carismático, aberto, loquaz e insondável. Ela, introspectiva, reservada, temente das bocas alheias e imprevisível. Jamais cogitariam a separação. Não por amor, nem por credo. Do sagrado, o único bem a uni-los era uma biblioteca! Robusta. Farta. Abastecida a muita economia e sacrifício. Obras idas e vindas. Clássicas. Contemporâneas. Novas. De sebos e leilões. Coubera-lhes, depois de muito aperto financeiro, arrematar um volume da 1ª edição de Monteiro Lobato. Uma relíquia! Fortuna à parte. As obras de autores brasileiros sinalizavam uma aliança inquebrantável. Até Fia deparar-se com outros interesses de Duto. Da percepção aos fatos, temia encarar o peso das evidências.  Na balança, as veias da literatura. A biblioteca magistral. Valia qualquer extensão. Duas escolas para ambos. Refeições negociadas. Mais uma obra. Outra mais. Filhos, não desejavam. Rebentos roubam a cena com as suas necessidades. Náufraga de uma vida inteira, Fia encontrara na ficção, na poesia, um espaço de cura e aconchego. Machadiana de cruz na testa, tornava-se outra quando a conversa seguia o rumo da prosa. Talvez não existisse ninguém com maior devoção às obras do autor. E à leitura, obviamente. Ela e Duto serviam-se no festim da literatura. Reconheciam-se nas vozes plurais. Comemoravam análises e estilos. Conteúdo e forma. Autores e títulos. Comunhão total. Sacra união. Como se dividissem um prato de camarão na trempe: degustação que exige paciência e boa dose de teimosia. Jamais dividiriam a biblioteca. Jamais. E as horas de partilha. Não contavam? Eram felizes, ao modo próprio de instalarem-se na vida. Mas, deitar com a sua ex-um-dia-irmã fora demais. Afinal, fora Duto a lhe propor fidelidade. Discutível conceito urbano!

– Ô, Fia! Passa a régua!

– … 

– Vira a página!

– …

– Eu viro a página se você me provar que, em trocando a capa, salvo a obra!

– …

No frescor da biblioteca, pairavam argumentos. Luz indireta. Bruxuleante, a depender da perspectiva.  Histórias bebiam na fonte dos comportamentos. Fatos. Da fruição aos aprendizados, a reflexão rasgava sedas. Memórias e ficção alinhavam narrativas. Misturavam-se no caldo das letras. Forma. Tom. Ensaios da vida comum. A vida comum nas calhas da poesia. Vida e obra afinando a interpretação. Acontecimento. O contemporâneo no claro e no escuro do olhar distanciado. Lúcido. Intempestivo.

A literatura vibra acordes. Diapasão do conhecimento. Se à memória a profilaxia é um cabide, ao esquecimento não se aplica anestesia. O tempo, que não passa, desenha curvas no leito das experiências. Suaves. Rotundas. Breves ou delongadas! A depender do terreno e do sujeito que o escava. Trabalho que não se faz sozinho e não se rende à neutralidade. Para Duto e Fia, talvez A Cartomante pudesse ensaiar uma análise. Psicanálise.Voltar a Machado de Assis é sempre um bom investimento.


Imagem de destaque: Open Clip Vectors

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