Maria Firmina dos Reis: mulher afrodescendente, escritora e educadora no Maranhão oitocentista

Zeila Sousa de Albuquerque

Ao realizar o Giro do Bicentenário pelo Estado do Maranhão, não podemos deixar de mencionar a conquista do território da escrita e da carreira de magistério por uma mulher negra, filha “bastarda”, fruto do incomum relacionamento amoroso entre uma portuguesa e um africano escravizado, no século XIX: Maria Firmina dos Reis. 

Professora e escritora, autodidata no mundo das letras, nasceu em 1822, na Ilha de São Luís, capital da província do Maranhão, ano em que o Brasil se tornava independente de Portugal. Maria Firmina era reconhecida como Mestra Régia. Mas o que isso significa? Tratava-se de uma professora formada e concursada, em contraposição à intitulada professora “leiga”. 

No ano de 1880, período não tão comum para a co-educação para meninos e meninas, ela fundou uma escola com este formato, com aulas mistas e gratuitas no Brasil. Com este feito, a professora subvertia a ordem educacional vigente, desafiando a moralidade estabelecida que segregava os sexos. Tal ação ia ao encontro das lutas das mulheres do final do século XIX, que desejavam a igualdade de ensino para os gêneros. A escola mista foi suspensa depois de dois anos e meio de funcionamento por escandalizar a sociedade local.

Além da função docente, Maria Firmina escrevia em jornais e publicava livros. Em 1859, décadas antes de fundar a referida escola mista, aos 34 anos, publicou o romance Úrsula sob o pseudônimo “Uma maranhense”. Esta é considerada a primeira obra feminina no Brasil a registrar a temática abolicionista.

Maria Firmina foi precursora de um discurso na literatura brasileira que tornavam públicas as condições de submissão do negro e da mulher na sociedade brasileira oitocentista. Úrsula é uma obra de vanguarda, tratando das questões de gênero e raciais com uma abordagem elucidativa sobre a opressão dos afrodescendentes e da mulher numa sociedade patriarcal, além de posicionar-se, de forma contrária, a essas injustiças sociais.

Ao abordar no romance a representação sobre as mulheres na primeira metade do século XIX, no Maranhão, principalmente no que se refere aos modelos de bom e mau comportamento feminino, Maria Firmina criticava a violência dos maridos sobre suas esposas. Além disso, a escravidão era o cenário social do enredo, que retratava a questão a partir do ponto de vista dos próprios escravizados. A escritora discutia questões sobre cativeiro, liberdade, diáspora negra, entre outros. 

Por meio do romance Úrsula, Maria Firmina mostrava o discurso ideológico da abolição da escravidão, as relações de poder que se davam entre senhores e escravos, entre homens e mulheres, bem como a estrutura colonial gerida por uma sociedade patriarcal.

A trajetória da educadora e romancista abarcou a segunda metade do século XIX e seguiu a primeira década do século XX (1822-1917), no qual desenvolveu sua carreira literária, incorporando a luta contra a escravidão sob o reinado de D. Pedro II, vivenciando anos depois, a libertação dos negros e a Proclamação da República. No entanto, o seu nome ficou esquecido na história da literatura maranhense por décadas, apesar de suas ideias terem tido certa circulação nos jornais da época.

A recuperação de sua obra aconteceu somente no final do século XX, por volta de 1973, a partir da pesquisa do poeta maranhense Nascimento de Moraes Filho, considerado um dos expoentes do modernismo no estado, que a descobriu casualmente ao examinar jornais antigos na biblioteca Benedito Leite. Moraes Filho ficou surpreso e ao mesmo tempo curioso sobre aquela mulher que já escrevia em jornais no século XIX. 

Na imprensa maranhense, publicou e divulgou livros, poemas, contos, chegando a compor letra e música de um hino em homenagem à abolição da escravidão. Um fragmento do hino cantava: “Quebrou-se enfim a cadeia da nefanda Escravidão! Aqueles que antes oprimias, hoje terás como irmão!”. 

Essas questões apontam a persistência de desigualdades e injustiças sociais vividas por mulheres negras no país, apesar da proclamada independência. Por outro lado, há de ser pontuada que a sua condição de professora concursada lhe proporcionou a oportunidade de lançar o romance Úrsula, tão importante para a história do nosso país. Contudo, devido aos fragmentos de sua vida e obra encontrados apenas recentemente, ainda restam dúvidas sobre o quanto desconhecemos sobre essa e outras intelectuais brasileiras do século XIX, XX e da nossa atualidade.

 

Sobre a autora

Pedagoga, Mestra e doutoranda em Educação – PPGE/UFMA, membro do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Educação, Mulheres e Relações de Gênero – GEMGe e do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero e Sexualidade nas Práticas Educativas – GESPE. Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão – IFMA. E mail: prof.zeila@ifma.edu.br.


Imagem de Destaque: Arte Revista CULT.

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