Manchas da sorte – quem dentro da cabeça tem outros? – parte III

Ivane Laurete Perotti

Encheu-se dos desafios. Aventuras. Batalhas. Encantamentos. À sela do rocim, abocanhou a cavalgada como se lhe fosse a última. Única. Última. Única e última. Assentou-se às sonhadas da imaginação escrita. Desenhada. Não haveria história mais certa. Bem escrita. No mundo, não haveria. Alimentado no jejum das memórias, seguiu à frente de Sancho. Rocim e cavaleiro. Asno e escudeiro. 

Lá se ia D. Quixote,

cavaleiro, esclarecido 

avistado por donzelas

princesas em perigo

Vossa Mercê que nos salve

E a todas dê abrigo

– Valha-me Deus!

Por Quixote guarnecido…

Passou dias e noites sob abrigo do relento. Desgalhado seco, tendo por lança. Ao descanso do asno, Pança e Rocinante, seguiu. D. Quixote de la Mancha. Dulcineia del Taboso, às ventas de romance. Merecida merecedora. A ela, a proeza. Senhora na simpleza. Nobre na nobreza. Aparatoso devaneio. Adarga e algibeira. Lança e ribanceira. Na velha armadura, o peso do empacho. 

– Não fujais, gente covarde! Descei aos pés da sorte. Reparai! de longe vem cavaleiro, homem justo, alvissareiro.

À lápide dos gigantes, braços de madeira. Rebolcou-se D. Quixote. Pança vinha atrás. Robusto escudeiro. Preocupado com o fidalgo. Das ideias tão matreiro. Mas dali ninguém lhe tinha: não eram gigantes. Afronésia e cavaleiro. 

Moinhos de vento. Gigantes de afronta. Encantadores de primeira. Algozes do passeio. Por fim, o cura e o barbeiro. Caiu. Ferido no monte, Kaio sangrava leitura. Temeu pela chave, pelos livros, pela sobrinha. Diante do prejuízo, o mal se avizinha. 

Na passagem sobre os livros, bebeu da água rasa. Da benta, ele não tinha. Sofreu a dor sofrida, da intenção e da lida. Encantadores e encantados, na boca da pobre ama, moravam naqueles livros. Motivo da loucura. Maranhas da aventura, sem cura? Vai-se o senso. Leva o tento. Desatino, desmerece o mérito, merecido merecedor. Merecimento. Desvalido. Mérito da grandeza. Melhor não ler. Não saber. Na azinheira de André, fez-se luta ao lavrador. No quarto dos livros muitos, desterrá-los deste mundo: dejúrio de terror. Condenados. Emparedados. Causa. Efeito. Talvez com sorte. Talvez sem morte. Louca pena. Sofredor. Pena louca. Com sorte. Merecido merecedor.

– E destes pequenos? Livrecos tão pequenos. Não hão de ser…

– Não são de cavalaria. Estes, mal não fazem. São de poesia.

– Ah! Vossa Mercê bem os poderia queimar. Vai que, depois de curado meu tio, lendo estes, metesse nas ventas, o desejo de andar pelos prados, cantando e tangendo. Ou pior. Há o perigo de se fazer poeta…incurável. Enfermidade pegadiça.

Na voz da sobrinha, o menino parou. Condenação. Negação. Livros condenados. Via-os pela fresta das páginas. Esgueirando-se para fora da obra. Animados. Vivos. Encantados. Que histórias? Quantas histórias?

Sentiu o apelo de D. Quixote em busca do aposento. Escutou o falar da ama:

– Que livros? Que aposento? Já não há mais livros nesta casa, carregou com tudo o mesmo diabo.

Suspirou. A noite ganhava horas. Invadia o casebre o vento carregado. Anúncios. Tempos de curta duração. Promessas de perigos outros. Indeléveis. Anunciados. Sentou-se à porta sem tranca. Do palco, despediam-se as estrelas. O sol abria os olhos. A boca. Sem dentes. Sorrindo para quem o visse. Boca de um gigante acautelado. Necessário. Condutor.

Suspira. Na garganta, uma fivela. Aperto. Cervantes escrevera à ponta de lança. Afiada lança. Empunhadura cravejada de metáforas. Ponta em ferro quente. Choro desconhecido. Fundo demais. Presente demais. Choro pelo vivido. Lágrimas do por viver. Referências. Sentimentos abertos. Rasgo de emoções. Parto da consciência. Conhecimento de vida. Da vida.  Vida vivida. Não vivida. O alargar da compreensão dói. Fere o peito dos olhos. Os olhos do peito. Chorou. Chorou a compreensão madura e requintada do aprendido. Do entendido. Da reflexão. Ganhou anos. Psicológicos. Emocionais. Sentiu-se antigo. Mas não alquebrado. Firmou-se na força do choro. Chorou a força firmada. Recente. Presente. Para nunca mais perder. Mirou a mira de Cervantes. Moinhos de vento. Braços gigantes. Sorriu para a última estrela. A boca do sol não o encontraria nu. No palco de sua vida, os livros abririam portas. A loucura não estava neles. Mas na ausência deles. No claustro de suas histórias. Aprendizados. Na cavalgadura da ignorância. Capitania do inverossímil. 

Vestiu o uniforme gasto. Abençoou a mãe. Foi-se. Cedo. Muito cedo. Nas mãos, o livro. No peito, a coroa. Era dele. E de quem desejasse ler. Aguardaria os colegas. Continuaria a leitura. Uma leitura. Outras mais a habitavam. Cada leitor garimparia a sua. A iniciativa era dele. O movimento: coletivo.

Às pedras do caminho, cochichou: – Bom dia! Sou eu. Sou outro. Sou muitos. Dentro dessa cabeça, moram vários. Mãos em lança. Lança em mãos. Escudeiro. Esclarecido. Filho da história. Leitor. Arquiteto. Construtor. Lavro a terra. Adubo letras. Pensante. Encantado. Escrevente. Sou eu. Centroavante. Essa história é minha. 

Para saber mais: 

CERVANTES, Miguel de. Dom Quixote. Série Clássicos.  Tradução Ernani Ssó. RJ: Penguin Companhia, 2012.


Imagem de destaque: Nadia Carol / Flickr

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