Lá da casa da sogra II – a previsibilidade de uma narrativa

Ivane Laurete Perotti

_ Muda o tema, Gernivaldo.
_ Mudo não! A gente deve falá das coisas de fato e do fato das coisas.
_ Tá comprando briga com a Norma!
_ Ela também olhou!?
_ Mas não com “esses olhos”!
_ “Esses”, são meus!
_ Cê não tem perna prá isso…tô avisano!
_ Elas têm!

O lote da conversa entre os dois arrebatados apontava fagulhas. Pólvora enriquecida. Trinitrato de glicerina. A química jamais lhes aprouvera. Entendiam de músculos. A estética dos corpos. Sarados. Vendendo saúde. Atravessando costumes. Promulgando repúblicas. Conceitos. Sentidos.

_ Ôpa! “Sentido” é um ponto forte de mim para mim.
_ Não tô gostando disso!
_ Cai fora, Aristeu. Tô na superação. Só de olho!
_ Óh!  exagero, mano! exagero!
_ Tô mentino? Tô mentino?
_ Não tá! Lá isso é verdade!
_ “De verdade”, tudo isso é “de” verdade.

Enquanto Aristeu se recompunha, as moças passaram novamente em direção a outro aparelho. A casa de exercícios (academia, para os semanticistas do peso), era um espaço interessante. Quase sereno, em se tratando do contexto. Bastava apreciar a estética das coisas. As coisas…

_ Beleza paranormal!
_ É verdade.
_ São irmãs?
_ Nunca perguntei!
_ Mano, a beleza tem poder!
_ Tem sim… você tá entregando a dinamite de mão aberta!
_ Admirar a estética dos corpos é ser a favor da vida, da saúde, do…do…
_ Tá… mas desvia os olhos, cara! Olha com elegância…
_ Só eu? Dá uma olhada aí, Ari. Todo mundo descansano na beleza.
_ Dona Norma tá ligada, cara!
_ Sô fiel, mano! Das vistas, eu entendo. Das vista…tendeu?
_ Você não é discreto, cara. Isso é constrangedor para elas. Manera aí!
_ É o problema das máscara…a gente esconde…
_ A baba, né?
_ Não, a percepção.
_ Prá mim, isso não é educado.
_ Tá brincando, meu! Quem não olha para uma mulher bonita?
_ Quem não olha para um homem bonito?
_ Ah! Nem!  Não discuto filosofias, meu!
_ Respeito!
_ Conhece alguém mais respeitoso do que eu?

À enunciação, chega a Norma:

_ Algum problema, Gê!?
_ Não, nada não, amor! A gente só tá…ah! tecendo considerações sobre a…a…corporalidade. Sacô?
_ Hum! Exatamente sobre qual ponto?
_ Tudo…ah! Quase tudo a vê com a sua, a sua tese. Tendeu?
_ Sobre cuidados de si?
_ Não, amor! Sobre…sobre aquela parte que você falou em…em estética e… beleza. Não era um tal de “Ficô” …ou…
_ Foucault… o que tem?

A dinamite rolava. Devagar. Bala de menta em língua de sede. Seda. Ia e vinha. De um para o outro. Lenta. Grudenta. O tom da conversa antecipando o reconhecimento do tema. Revirando Hipólita. A própria. De cinturão e tudo!

_ Cinturinha, meu!
_ …
_ Como assim, amor?

Novamente, a beleza em dupla se movimentou. Norma acompanhou os olhos. Eles, as pernas.

_ Isso é quase um assédio! Vocês não se envergonham, não?
_ O quê… o quê, amor?
_ Pergunta retórica desmerece resposta.
_ A gente interage, né bem?
_ Bem?
_ Amor!
_ Os homens são mesmo um…
_ A gente é!
_ Não! Eu não sou não, Gernivaldo. Essa é sua, mano! Avisei.
_ Avisou o quê, Aristeu?
_ É… nós… nós conversávamos sobre…elegância…e…
_ …Educação…
_ Sei! Vocês dois enfrentando a ética!
_ Me erra, Norma! O marido é seu!
_ Amor, ele não quis dizer isso. Não tô entendeno o rumo da conversa…

Quem estava de fora, também não. E outros exercícios deveriam ser executados. A beleza é uma questão de ponto vista. De cultura. Gerações. Lugares. Tempos. Deslocamentos.

_ É isso, amor. A nossa conversa ilustrava a…a…
_ A deseducação de vocês dois! Onde amarrei meu …
_ Não me chama de burro! Ô, amor! Uma conversa saudável, meu! Você fala que eu tô lendo pouco, né?
_ É! “Poco” de menos é nada!
_ Tô…tô desenvolvendo o discurso, mor!
_ Aristeu, fecha a boca.
_ …falei nada!
_ Fecha, Aristeu!
_ Eu…eu tô de máscara, Norma.
_ Fecha!

Não é mensagem subliminar que se diz. Diz-se, implicaturas. Elas fazem parte do não dito com tal e devotado fervor que as palavras cobram débitos. Créditos. Interpretar não é apenas assumir uma leitura. É apanhá-la no ar. No bojo retido à fonte seca. Insólita. Palpável. Invisível. Tão presente quanto os corpos que…

_ Ô Gê, desce daí pra gente conversar um pouco.
_ Agora?
_ Agora!
_ Mas…,mas eu…os exercícios?
_ Você está muito cansado, é visível!
_ N…não! Tô não! Nem comecei!
_ Por isso mesmo! Procrastinação não rima com musculação.
_ Rima!
_ Cala a boca, Aristeu!

O silêncio de Ari puxou a temperatura ao sul polar. Vil metal. Prisco. Arisco.

_ Vocês dois não têm vergonha na cara! Amadureçam!

Na troca dos exercícios, os aparelhos mais próximos foram ocupados. Ambos. Os dois. Norma buscou a deixa:

_ Oi, meninas!

A conversa colou moedas. Interesses. Amenidades. A beleza das coisas e as coisas da beleza. Quem desejasse ver, viu. De Coracini a Foucault, as três debulharam trocas. Preteridos, os meninos amargavam o peso da palmatória.

Mas, para a veracidade dessa escrita, Gernivaldo e Aristeu ainda hoje treinam a leitura da tese defendida por Norma: “Michel Foucault: as técnicas de si e a estética da existência”. A maior dificuldade para os dois está em estabelecer relação entre o dito e o escrito. Ou melhor, entre o visto e o avistado. Uma vez que nenhum fato corrobora o expurgo determinado.

_ Continua, Gernivaldo.
_ Quieto, Aristeu!

 

Para saber mais
CORACINI, Maria José. Identidades Silenciadas e (In)Visíveis: Entre a Inclusão e a Exclusão. São Paulo: Editora Pontes, 2011.

FOUCAULT, M. A.  História da Sexualidade III: O Cuidado de Si. 8ª ed. São Paulo, Edições Graal, 1985. 


Imagem de destaque: Galeria de imagens

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *