Escola e movimentos sociais: essa parceria dá certo?

Edilson da Silva Cruz

No ano de 2019, antes de eclodir a pandemia de COVID-19, vivenciei o momento mais feliz da minha trajetória como educador. Na escola em que sou diretor, ajudei a organizar um projeto intitulado “Nós fazemos a História: a escola e os movimentos sociais”. Partindo do interesse dos estudantes por aulas mais “dinâmicas” e temas contemporâneos, junto com a professora de História, trouxemos para a escola ativistas/militantes de diversos coletivos e movimentos que atuam na defesa dos direitos humanos e dos direitos da Terra. MST, movimento negro, feminista, LGBT, movimento religioso ecumênico, indígena, juventude… Como produto final, elaboramos um documentário que está disponível no Youtube e narra o percurso do projeto, com depoimento de estudantes, educadores e militantes. Em 2021, o projeto foi contemplado com o Prêmio Paulo Freire de Qualidade da Educação Municipal, conferido pela Câmara Municipal de São Paulo.

Foi um projeto feliz em vários sentidos. Destaco aqui três deles: o diálogo como conteúdo e forma, a presença dos coletivos e militantes da escola com sua pedagogia da vida e a abordagem conscientizadora alcançada.

O projeto nasceu do diálogo entre a professora e os estudantes. Eles queriam aulas mais dinâmicas, que os motivassem mais a aprender. Também desejavam discutir temas cotidianos e atuais, como o racismo, LGBTIfobia etc. Ao escutá-los, também a direção da escola assumiu a tarefa de buscar dar conta daquela demanda. Assim surgiu a ideia de apresentar temas contemporâneos a partir de rodas de conversa, no estilo dos círculos de cultura freireanos, convidando ativistas para bate-papos. O diálogo também incluiu revisitar o currículo de história e buscar caminhos de mediação do conhecimento. Forma e conteúdo estiveram, portanto, impregnados do diálogo, que é condição para uma educação como “prática de liberdade” (Freire, 2011).

A presença de ativistas de diversos coletivos e movimentos sociais repercutiu na vivência escolar dos estudantes e dos educadores. Os educandos passaram a interessar-se e ansiar pelas segundas-feiras, dia em que o projeto acontecia. Ao serem indagados a respeito, eles apontaram o fato de que os convidados dialogavam com eles, não só porque a aula era um espaço de fala, mas porque os assuntos abordados tocavam em feridas, despertavam esperanças, dialogavam com o mundo da vida de cada um. Da mesma forma, os educadores sentiram-se impactados ao conhecer de perto realidades que ensinam há muito tempo através de livros e relatos de terceiros. A sabedoria prática dos militantes, conjugada com uma profunda capacidade de análise teórica da realidade, também foi impactante. Despertou o desejo de refazer todo o currículo e as práticas pedagógicas escolares, em função de uma pedagogia mais vivencial, conectada com a realidade, mais motivadora e capaz de aprofundar assuntos importantes.

Forma e conteúdo conjugaram-se para gerar conscientização, ou seja, o “processo de criticização das relações consciência-mundo” pelo qual “os sujeitos assumem seu compromisso histórico de fazer e refazer o mundo” (FREITAS, 2017, p. 88). Houve aprendizagem de conteúdos escolares conceituais, de valores éticos, abertura a diversidade e criatividade, desvelamento de estruturas de poder da sociedade e, como a sintetizar tudo, a emergência de ideias e propostas de transformação da realidade. O bonito do projeto foi perceber a presença de uma “reflexão verdadeiramente transformadora da realidade, fonte de conhecimento reflexivo e criação” (FREIRE, 2011, p. 127). Um aprendizado conscientizador que, além de permitir o reconhecimento do mundo, “prepara os homens, no plano da ação, para a luta contra os obstáculos à sua humanização” (idem, p. 158.).

Ao fazer memória do projeto, é impossível não nos questionar sobre o lugar que os movimentos sociais e populares ainda (não) ocupam na educação escolar. Nos últimos anos, o debate educacional esteve pautado no conservadorismo de projetos como o “Escola Sem Partido”, cujo cerne era a negação da pluralidade, diversidade e possibilidade de recriação do mundo pelo conhecimento escolar. Embora contrários ao projetos, quantos de nós, educadores que se identificam como progressistas, freireanos, fomos capazes de forjar no chão da escola, alternativas de construção do conhecimento sobre outras bases?

Sabemos que as realidades de cada escola, de cada rede de ensino, em cada canto do país, são muito distintas. Ao mesmo tempo, acreditamos que o que fazemos em um lugar pode inspirar outros educadores a fazer igual, parecido ou diferente, mas ainda assim partir para a ação.

Dessa forma, o que estamos esperando para levar para dentro da escola a força, a prática educativa, a práxis transformadora dos movimentos sociais? Falo de convidar lideranças para eventos, realizar oficinas temáticas, promover ações de formação com ativistas e militantes, realizar rodas de conversa com coletivos e movimentos, propor parcerias para ações com a comunidade etc.

A experiência que realizamos aqui, em uma escola pública da periferia de São Paulo, mostrou que os movimentos sociais têm um potencial educativo capaz de renovar a cultura da escola; que os militantes e ativistas lidam com questões sociais imprescindíveis de serem tematizadas e problematizadas na escola; que a presença de movimentos sociais na escola a aproxima da realidade, pois não a tematiza de modo abstrato, mas demonstra vivências concretas; que a discussão aberta de temas com pessoas que os vivenciam potencializa o caráter conscientizador da prática educativa.

Precisamos dos movimentos sociais, esta “grande escola da vida”, como dizia Paulo Freire, para nos ajudar na tarefa educativa que temos pela frente, a de reconstruir um projeto de país democrático e uma escola emancipadora.

Para saber mais
Documentário ‘Nós fazemos a História: a escola e os movimentos sociais”. Acesse aqui.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2011.

FREITAS, Ana Lucia Souza de. Conscientização. In: STRECK, Danilo; REDIN, Euclides; ZITKOSKI, Jaime José. Dicionário Paulo Freire. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p.88-89.


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