EJA como política pública e a cultura da precarização

Alex de Oliveira Fernandes

Apesar das dificuldades para se definir uma política pública, esta envolve pelo menos três elementos importantes: constitui um quadro normativo de ação; combina elementos de força pública e elementos de competência (expertise); tende a constituir uma ordem local, segundo Muller e Surel (2002). Esses três elementos de uma política pública podem ser observados na Educação de Jovens e Adultos (EJA), modalidade garantida na legislação educacional. 

O caráter normativo da EJA se evidencia na Constituição de 1988 e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB (Lei 9.394) que oferecem arcabouço jurídico para várias outras leis, portarias normativas, pareceres, resoluções, decretos, Plano Nacional de Educação, relatórios e notas técnicas emitidas por órgãos e institutos vinculados ao Ministério da Educação – MEC e inúmeras legislações estaduais e municipais, conforme prevê o caráter federativo da República Brasileira. 

A legislação e os documentos da EJA evidenciam, também, para além do caráter normativo, os elementos de competência (expertise) dessa política pública ao envolver especialistas, pesquisadores, atores estatais e movimentos sociais responsáveis pelo aspecto técnico, científico e regulatório da Educação de Jovens e Adultos. Destaca-se nesse aspecto a luta de movimentos sociais e sujeitos que atuam diuturnamente na EJA para garantir a oferta da modalidade, com toda a sua complexidade, conforme prevê nossa legislação. 

Em relação a constituição de uma ordem local, terceiro elemento destacado por Muller e Surel (2002) na configuração de uma política pública, a EJA tem entre os seus objetivos o de promover a garantia de direitos para jovens, adultos e idosos excluídos do processo educacional. Nesse sentido, a EJA cria uma ordem local, ao possibilitar espaços-tempos de aprendizagens para sujeitos que historicamente foram e continuam sendo marginalizados.

Acontece que, apesar dos inúmeros avanços formais, legais, teóricos e políticos verificados nas políticas de Educação de Jovens e Adultos, essa modalidade ainda padece com o amadorismo, a precarização, o improviso, o desrespeito e a incompetência por parte de gestores municipais e estaduais, que ficam responsáveis pela organização da oferta da EJA nas cidades e nos estados brasileiros. 

É preocupante como ainda se verificam improvisos no interior de secretarias municipais e estaduais de educação. Muitas vezes, pessoas que sequer compreendem as especificidades da EJA ficam responsáveis pela organização da oferta dessa modalidade, o que vem gerando a precarização no atendimento. 

Como exemplo disso, incluem-se a demora na abertura de turmas, a exigência de 25, 30 estudantes para manutenção das turmas, as ameaças e o fechamento de turmas e escolas durante o ano letivo, o baixo quantitativo de professores(as) para atendimento dos estudantes (em muitos municípios aplica-se o 1.0). Muitos municípios vêm adotando a lógica da unidocência e, nesse caso, exige-se que um único docente dos anos finais do ensino fundamental lecione saberes e conteúdos de todas as disciplinas. Incluem-se ainda nas debilidades do atendimento a inferioridade da merenda oferecida nas escolas, tanto em quantidade, quanto em qualidade no diz respeito à alimentação adequada para pessoas adultas trabalhadoras, em relação a outras modalidades (e isso quando as cantinas não ficam fechadas no turno de aula noturno), a ausência de profissionais de biblioteca, a verba inferior para o trabalho de campo, a ausência de livros adequados à faixa etária e à etapa da escolarização, a inadequação do mobiliário, da iluminação, dos sanitários e, entre outras tantas, a ausência de suporte pedagógico com a diminuição de profissionais que atuam na modalidade.

A instabilidade no atendimento é tamanha que parece mesmo haver uma “cultura da precarização” responsável pela formação de subjetividades de sujeitos que trabalham na escola (incluindo diretores(as), secretários(as) escolares, professores(as) e outros trabalhadores da educação). Muitos desses sujeitos passam a se acostumar com o atendimento improvisado e insuficiente oferecido por gestores municipais e estaduais, uma vez que suas subjetividades se forjaram nessa cultura. 

É triste constatar em grandes cidades como Belo Horizonte e Contagem, a perpetuação da cultura da precarização. Para muitos gestores, a complexidade existente em turmas de EJA com estudantes de 15 a 70 anos parece ser irrelevante. Entretanto, essa complexidade deveria ser levada em consideração, pois envolve níveis distintos de alfabetização, de interesse, de comportamento, entre outras questões, e, portanto, interfere na qualidade do processo de aprendizagem. Trabalhar na EJA tem sido cada vez mais um exercício de resistência contra essa cultura da insuficiência, da falta. 

Nesse sentido, precisamos ampliar nossa capacidade de resistência. Que nossos(as) diretores(as), professores(as) e demais trabalhadores da educação nos ajudem a fortalecer a EJA como política pública de qualidade social, caminho necessário à superação da cultura da precarização verificada no interior de muitas escolas.  

Sobre o autor
Doutor em Educação pela FaE/UFMG. Professor nas redes públicas de educação em Contagem e Belo Horizonte. 

Para saber mais
MULLER, Pierre; SUREL, Yves. Análise das Políticas Públicas. Col. Desenvolvimento Social. Editora da Universidade Católica de Pelotas, UCEPEL, Pelotas RS, 2002.


Imagem de destaque: Galeria de Imagens.

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