E o mundo se fez – parte II

Ivane Perotti

Fingiu costume. Impregnado por emoções literárias, abriu a sala escondendo o entusiasmo.  Não contaria da insônia. Obviamente. Procurava um gancho pedagógico para socializar aquela experiência. Sérgio foi o primeiro a abrir o microfone:

— Ei, próf! Você recebeu o memorial?

— Bom dia! Recebi. 

— Vai ler para nós?

— Vocês lerão para a turma.

— Uai!?

— Quem desejar, Sérgio!

— Ah! Cortou o barato!

— Leia a sua escrita. Pode começar.

Sérgio leu. Sagaz. Curioso. Irrequieto. Desenhou-se no internato da pandemia: sua casa, O Antenista. Gargalhadas garantidas. Distribuição de papéis. Entre os elos da escrita, brumas da adolescência. Sombras dos tempos. Fantasmas de medos. Unhas de revolta. Faces de fadiga. Teorias conspiratórias.  Responsabilidades em cheque. Choque. Saudades inconfessas. Urgência do coletivo. Vontades do normal. Anormal. Representação dos lugares. Família. Escola. Colegas. Chistes sobre o “eu”. Comentários estendidos. Críticas. Sugestões. Implicaturas da insegurança. 

Os parágrafos da leitura dançavam à frente do professor. Intersecções revezavam-se acionando a sua decisão. Precisava incendiar a leitura literária. Alimentar a faísca que se apresentara. Soprar o fogo da curiosidade sobre as páginas de outras obras. A comoção interna desassossegava-o. Certificava-se da comichão que lhe atingia o intelecto. Ainda não construíra uma proposta. Remexia-se. Era o educador diante da linha. O professor vislumbrando o plano. Voltou à tela quando as gargalhadas cresceram. Sérgio o descrevera em caricatura como o “Carangueinista”. Alusão a Aristarco, diretor do Ateneu. Apresentou o busto. Colagem muito bem feita com fotografia e ilustração. O gigantismo da cabeça (fotografia do professor extraída de alguma rede social) sobre a imagem da escultura O Pensador, de Rodin. Ao redor, anjos de Michelangelo, uniam-se aos recortes de outros anjos. Barrocos, esses. Coloridos e colados. Muito bem colados ao texto imaginoso. Palavra do leitor/autor. Autor/leitor.

Enquanto a sala se recuperava das gargalhadas e contribuições, Sérgio pediu para concluir. Preparara uma placa para ser colocada aos pés do busto. E foi aí que o professor viu a câmera abrir-se. O promotor de sua insônia apresentava-se à turma. Silencioso. Braços cruzados. Rosto colado à tela. Olhos curiosos. Lábios em espera.

— Ó próf! Quando a gente voltar, a gente pode colar os trabalhos pela escola? 

Os trabalhos referendavam o “seu” trabalho. Especialmente a parte caricaturada. Inegável a boa manobra. E melhor ainda os possíveis resultados.

— Com certeza, Sérgio. Vamos organizar uma exposição para aqueles que gostarem da ideia.

 Sérgio levantou uma suposta “placa”, cujo esboço traçado em papel ofício, rendeu. Explicou:

— Eu fiz uma dedicatória para o “Carangueinista”. Tá, próf!?

— Certo, Sérgio! Toda a produção artística sobrevive de tensões. – a provocação não ilustrou o comentário, mas a turma entendeu que o professor dissera algo que deveria ser retomado.

— Isso é um palíndromo! – disse e sorriu esperando aclamações.

— Aprendeu! Aprendeu! – era a turma caindo sobre Sérgio que, na oficina sobre “as palavras não são estanques”, sentira dificuldade em repetir o nome. 

— Então…esses PA-LÍN-DRO-MOS aqui! – esperou a onda de gritos compartilhados descer para continuar – são uma homenagem ao …vocês entenderam! – na folha, em letras grandes e coloridas, lia-se:  A SACADA DA CASA/ AME O POETA, enquanto as paredes algorítmicas cediam. 

— Esperem…- era Sérgio pedindo atenção! — Falta a Capicua! – e apresentou os números atrás da folha: 20/02/20. 

Bocas abertas. Mãos na boca. Ecos de: — Não acredito! Não acredito! Ele aprendeu! Arrasou! Arrasou! Possivelmente eram ouvidos pelas redondezas das casas. Alguns pais buscavam a tela. Irmãos menores reuniam-se diante do computador. Conferiam a interação e permaneciam ali, desejosos do mesmo riso. Daquela alegria que se faz no universo dos subentendidos compartilhados pela proximidade. A sala de aula invertia as distâncias criadas pelo isolamento. Os estudantes reconheciam as “sacadas” de Sérgio. Ele aproveitara o memorial para “apresentar-se”. Os recortes, as colagens, testemunhavam o processo de leitura da obra literária. Rendimentos expressivos. Livres. Abundantes. Alusões coordenadas com o “imagismo” do romance. Evolução. De dentro do texto para fora. Outros textos.

O professor conferia os movimentos do até então silencioso aluno, responsável por mudanças que ainda se projetavam. Ele sorria, parecia divertir-se com a apresentação. Talvez um começo. Uma abertura. Alimentá-la, agora, seria um movimento de mestre. Ou melhor, de literatura. Uma vez que, daquele longo e intenso memorial, ficara-lhe o brilho da alma curiosa pela escrita. Das referências pessoalizadas em narrativas que lhe haviam tocado. Levar a leitura literária para dentro da sala de aula era processo. Multiplicação. Lento. Mas necessário. Um tanto intuitivo. Mas obrigatório. Não existia a melhor obra para o momento certo. Sustentar as experiências de leitura, sim. Mediar. Gostar. Professor que gosta de literatura e lê literatura. Planejamento e flexibilidade. Capacitação e exercício. E por pensar em exercício, provava-se mais uma vez que a leitura não gera hábito. Hábito atende à automação. Leitura é processo. Experiência. Acontecimento.

O professor encerrou o encontro com estrelas por detrás dos olhos.


Imagem de destaque: Hatice EROL / Pixabay 

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