E o mundo se fez carne 

Ivane Perotti

— Carne? Que nojo!

— Era para ser uma frase de efeito.

— Conseguiu. Estou imaginando uma imensa bisteca dividida por água e… a gente atolando os pés na… Ploft…Ploft…Ploft… eca!

— Também não é para tanto, Abi! E você adora comer carne, né?

— No prato, cara. No prato.

— Você é exagerada! Há-bi-li-do-sa…- gargalhadas com gotículas invadiram a tela do computador.

— Brincar com o nome dos outros dá sangue, né!?

— Tá! Tá! Falando sério: eu gostei da ideia.

— Sei não, Sérgio. Isso de você se inspirar na leitura só por causa do nome da personagem, tá com nada, não.

— Ah! Me ajuda, vai! Quero escrever as minhas memórias. 

— Você não percebe que é uma triste coincidência? Sérgio…de O Ateneu…o menino e o Romeu…

Raul…Abi! Raul! É o autor. Nada a vê!  E você? 

— O que tem eu?

— Também deveria aceitar a coincidência! Abi…

— Só Abi! Por favor! Só Abi! Você me conhece. Nem tenta…nem tenta dizer o resto.

— Eu queria saber se os nossos pais combinaram isso.

— Essa tragédia?

— Nem é tão ruim assim, vai?

— Não? Eu nunca mais volto para aquela sala. Nunca mais.

— Eu até gostei. Boa sacada do pró!

— Sacada eu vou dá nas venta dele.

— Para de ser tão dramática. Só por causa dele todo o mundo leu o livro.

— Sei lá!

— Sabe, sim. Não qué dá o braço a torcê

A pandemia confinara-os às salas virtuais. Mesmo considerando a necessidade, alguns se rebelavam. Diziam-se internados. Presos. E a maioria, levada pelas ondas de informações falsas, argumentava a partir delas. O que, de acordo com o professor de Língua Portuguesa e Literatura, poderia servir de gancho… meio gancho, talvez…para introduzir a leitura de O Ateneu. Um pouco forçada a tentativa, mas ele leu a pertinência. A preparação para a leitura rendeu para além do esperado. Por aquelas circunstâncias que o contexto engendra, casou de estarem na mesma turma, dois homônimos a personagens da narrativa.

— Nada de homôninos… sou Abi e ponto final.

Instalada a curiosidade, o interesse correu veias abertas. Os que perceberam o distanciamento no tempo entre as nominações, imediatamente perguntaram se os respectivos pais haviam lido Raul Pompeia. Os que procuravam por semelhanças entre os perfis, mediram possibilidades. Obviamente, observados pelo professor quanto a não se excederem. Do interesse ao escracho, um passo.  Ainda, aqueles que, movidos por associações, buscariam na leitura a confirmação de narrativas. Próximas. Aproximadas. Juntadas à ideia memorialística de um jovem estudante. E, por final, o grupo de alunos e alunas que alçavam pernas por sobre o muro da indecisão. Comum entre adolescentes atiçados por hormônios vulcânicos, pressões, perdas, conflitos, emoções aracnídeas e sortidas tragédias.  Muito comum. Talvez fossem eles o grande desafio do professor.  Vestiam-se de armaduras improváveis. E até desenvolviam o desgosto pela escola. A anulação dos desejos. O comportamento distante. Irascível. Por alguns, etiquetados. Por outros, erroneamente lidos. Ao professor, parecia-lhe improvável desenvolver o gosto e a fruição em almas invisibilizadas pela família. Pela escola. Pela sociedade. Em seus anos de experiência, aprendera que, ensinar, o professor não ensina. Ele aprende a encantar. E se, encantado, encanta a autonomia do aprendizado. Reconhecia as cruezas do trabalho. Apostava na paciente interação. Adolescentes sabem quando são vistos, vistas. E respeitados, respeitadas, até quando desconhecem o conceito. A escrita do memorial foi proposta da turma. Pego pela bochecha do estômago, o professor fez lauta refeição. Feliz pela insurgência. Contente pelos desdobramentos. Que assim fosse. Escrevesse quem o desejasse. Tarefa livre. Partilhasse aquele que sentisse vontade. São dessas vontades que o professor se alimenta. Se empanturra, quando pode. E tudo faz para voltar ao prato. 

Lida, relida e discutida, a obra de Raul Pompeia encarregou-se de encantar a turma. O internato dera o que falar. E Abílios por Abílios, ficaram com a Abi. Só. Respeitosamente. Nas rodas de conversa, um dos alunos invisibilizados pelas massas opressivas, pediu para entregar o memorial. Diretamente ao professor. Diretamente? E agora, Pompeia? Não deixaria o escrito na escola. Queria entregar sem atravessadores. A solução brotou na indicação dos correios. Passado o endereço, não passou a surpresa do professor. Sentiu-se ansioso. Esperar o quê? Seria timidez excessiva? A missiva teria confissões? Abalos? Essa parte da docência comia-lhe as entranhas. Era professor, não ocupava outro papel. Contudo, negava-se a fechar os olhos para o contexto daqueles meninos e meninas marcados pela vida. Ou por ela tangidos, tangidas. 

A correspondência chegou em quatro dias. Sem confessar, o professor demorou um período inteiro para abri-la. No início da noite, quando os botões se fecham em concha, sentou-se diante das primeiras estrelas a pintarem o céu. Um pouco envergonhado pela demora, não estava preparado para as confidências.

Reconhecendo-se invisível, o aluno descreveu a vida aos quinze anos e meio.  Pacata demais. Abandonado pelo pai. Mãe em idade avançada. Único filho. Sem amigos. Amigas. Sem perspectivas. Dormia para acordar. Acordava para dormir. Sua diversão: jogos online. Leituras: as estrangeiras. Até ali, um perfil muito comum. Previsível, até, não fosse a solidão desenhada em cada linha. Era desconfiado. Arredio. Não gostava de bagunças. Também não gostava da escola. Menos ainda das aulas virtuais. Adormecia. Não tinha interesse.  Gostava de músicas da quebrada. Não participava dela. Era mano. E não era. O coletivo não lhe interessava. Mas o parágrafo que seguia, deu asas ao professor.  Juro que as estrelas se aproximaram. Aproximaram-se ao ponto de ver o rosto do professor inchar-se de emoções. 

 

Continua na próxima edição…


Imagem de destaque: Serwa27

 

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