Doze apóstolos – metodologia propedêutica

Ivane Laurete Perotti

Tenho uma tia que nasceu sábia. Quando abrolhou neste mundo, as estrelas encontravam-se em conjugação verbal. De palavras. De texto. De tudo.

_ Vá conversar com elas agora mesmo!

_ Mãe…são orquídeas! Pelamordeus!

_ Volta lá e bate uma prosa!

Entendia de prosas e “prosas”. A primeira, natural e espontânea. A segunda, motivada e construída, dependente da moda e dos interesses mascarados em interação verbal. Defendia a primeira, acertadamente. Esforçava-se para declinar da segunda. Fugia desta, para dizer com pontaria. Era contrária à posição social da peta. Potoca. Trica. Coscuvilhice. Independentemente dos casos. E dos acasos, coturnicamente baseados em probabilidades improváveis.

_ Coturno não, meu filho! Traz lembranças prováveis.

_ Larga disso, mãe! É só um…

_ É não! Conte as marcas.

Difícil ouvir dela o que eram as marcas. Dada a fazer do limão uma feijoada, estampava no peito a frase não escrita: “Bateu, rolou.” Poucos relacionavam a máxima à teoria bergsoniana. Do dito ao riso, preferia o fato. Direto. Pontual. Certeira em observar a automação humana, antecipava as caídas e recaídas com anos de antecedência. Dito e feito. Se lhe chegava à boca, o tombo era garantido.

_ Boca santa!

_ Que nada! É caso de atenção ao feito.

_ Fato!

Na família, laboratório de endosso aos casos, havia quem dela se afastasse. Poucos. Especialmente os que tombavam levando outros de arrastão. De boca. De pé. De alma. “Ai! Eu não queria estar na pele do fulano…”. A referência apontava o que alguns chamam de “devido castigo”. Ou, justiça divina. Sabe-se lá como as escolhas pagam débitos. Sabe-se lá!

Os melhores causos envolvem a minha tia e as pedagogias de aplicação. Carinhosa com todos. Especialista em sanduíches com pepino verde. Anfitriã de soberana generosidade, ela conhecia bichos e plantas. Consequentemente, bichos, plantas e homens. Nessa ordem. Ou desordem. Nós, sobrinhos e sobrinhas, acreditávamos que, quando a tia estourava pipocas, a Terra se deslocava levemente sobre o eixo. Leve. Suave. A bem de não provocar exagero na curiosidade. Passava despercebido. O tranco e o barranco. Menos para nós, fiéis ao ofício de consumir as pipocas brancas coroadas de açúcar, melado, chocolate derretido. Isso quando os bolos de cenoura não dividiam a tarde em antes e depois. Depois era um tal de “eu não quero ir embora, mãe!”, evidenciado pelas grossas fatias enfeitadas de amor e abundância. Sempre fazia mais de um. Conhecia os sobrinhos que arrebanhava. De dentro e de fora da família. Já cedo, eu a pensava comunista: o que era dela era de todos. Só mais tarde, bem mais tarde, entendi o conceito. A minha tia reverenciava a vida com largueza de coração. E nesse coração, cabiam as plantas, como se nascessem ali. Dali. Talvez! Nunca conferi. Mas desejei. Associava à história do “Menino do Dedo Verde”, de Maurice Druon. O autor apresenta Tistu. Eu apresento a minha tia. O “dedo” era o mesmo. Verde. Capaz de germinar qualquer semente em qualquer espaço material. Faziam. Ele e ela. Ele, restrito às malhas da literatura. Ela, sem restrição, colhendo baldes de bolotas escuras da jabuticabeira carregada.  Cultivando orquídeas. Frágeis. Teimosas. Surreais. Multiplicando as suculentas como se fossem pirulitos de clorofila. Sustentando em rede os pesados caules das roseiras floridas. Muitas rosas coloriam o seu jardim. E lá ficavam. Espreitando o sol e a chuva. Os passantes juravam escutá-las em tratativas notúrnicas. Boêmias. Voluptuosas. Pândegas, no alto da vivacidade roseiral. Ouvi um desses testemunhos diretamente da boca apaixonada de um vizinho:

_ Dona Tia! Há di si tomá munto cuidado cum as rega dessas rosa. Há di si tomá! São um pirigu pras venta dum homi. Ôtra noiti, nu adiantadu da hora, fui atraído “nelas”.

Quandu dei pur mim, táva di quatru, cherandu os ar. Uma vergonha. Meu corpu furmigandu di paxão! Paxão di beleza! Um pirigu!

A tia sábia sorria entendimentos. Conhecia a experiência. Deslumbramento estético. Odorante. Lascívias da natureza. Acontecimento raro. Não impossível. Provável entre os atentos. Performance da “A intuição do instante”, de Gaston Bachelard. Quase isso. Para mais ou para menos, ela entendia. Alguns, desprovidos de apetrechos, diziam não que a tia não tinha outra coisa para fazer. Tinha. Fazia. Muitas coisas. Mas isso daí não era para a boca dos desapercebidos de sensibilidades. Foi por motivos decorrentes que ela me contou sobre a pedagogia floral. Psicanalítica, minha tinha gostava de ler. Textos. Linhas. Sinais. Tempos. Pessoas. Lia como respirava. O mundo lhe abria páginas. Do visível e do invisível. Do audível ao imaginável. “Bateu, rolou.”  Não batia. Esperava.  Entristecida por um meneio da natureza _ nunca ingrata, teimosa!  _   aplicava a metodologia propedêutica há quase um ano em uma “Doze apóstolos” _ “Clívia”, para os céticos. Folhuda. Robusta. Bem-tradada. Esbanjava saúde. Brilho. Altura. “Inflorada”. Sem flores? Nenhuma. Nada.

Na inspeção, minha tia impunha óculos. Lupa. Luzes direcionadas. Palpação: delicada. Cuidadosa. Suave. Ausculta: todos os sentidos em ação. Foi na percussão que ela decidiu, além de ouvir o som correr pela seiva, propor à “Doze apóstolos” uma troca de favores. Quase isso. Não entrou em detalhes quando contou sobre os resultados. Foi categórica em dizer-me que a ênfase surtiu efeito. Imagino. Após os pequenos golpes com um pompom de tricô, feito à mão e zelo, a planta respondeu de pronto. Mais do que prova do entendimento entre ambas. Mais do que prova da audição apurada das “Trimezia coerulea”. Para a minha tia, a natureza tem ouvidos. Voz. Coração. Lágrimas. Sentimentos expressos na corporalidade. Corpos que vêm e vão nos silêncios das grandiosidades. Misteriosas. Simbióticas. Irrefutáveis.

_ Minha sobrinha querida, preciso lhe contar que a “doze” floriu. (click de celular).

Em meu celular, a fotografia movente de uma “Doze apóstolos” carnudamente florida enche a tela. Dezesseis flores. Quatro de brinde. Quatro a mais para colorir a troca de favores. Sábia tia. Minha tia. E para quem diz que causos não têm moral, eu tracei um esboço não fabular:

“Para os que tartamudeiam, a fala não cria raiz. Para os que dialogam, as raízes espocam flores. Assim, eleja um bom diálogo pela natureza de suas relações… vai que, delas brotem flores!”

PS: para Nina! Sábia tia! Todos os fatos não são mera coincidência. São ajustes da natureza.


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