Descolonizando o 7 de setembro

Raquel Melilo

A palavra mito, de acordo com o dicionário Aurélio, significa relato fantástico ou lenda. Essa é a melhor definição para a tela Independência ou Morte pintada por Pedro Américo, em 1888, em Florença (Itália) e, hoje, encontra-se no Salão Nobre do Museu Paulista. Esse famoso quadro foi feito 66 anos depois da data considerada como a independência do Brasil e, inclusive está presente no hino nacional brasileiro: Ouviram do Ipiranga as margens plácidas
de um povo heroico o brado retumbante. A imagem de Pedro I em roupas militares e montado em um cavalo branco não condizem com a realidade do ato. A obra foi encomendada por dom Pedro II, filho de Pedro I, quando os ideais republicanos já ameaçavam a monarquia brasileira e apresenta uma série de mitos em relação à cena. Vamos a alguns questionamentos sobre a obra. 

O brado do Ipiranga aconteceu? Até onde nos revelam as fontes históricas, não. O próprio autor, Pedro Américo, reconheceu que havia mudado elementos presentes no quadro, tal como a elegância dos cavalos e a situação de tensão entre as tropas portuguesas e o futuro imperador. Pedro I não estava vestido como um príncipe real e, sim como um tropeiro, ele também não montava um cavalo alazão e, sim um animal de carga, provavelmente uma mula. O quadro, na verdade, retrata a ideologia elitizada do fato, uma vez que foi feito a pedidos de políticos do partido conservador no auge da crise da monarquia do país. 

A independência sempre foi comemorada em 7 de setembro? Também não. Na época, a grande discussão era se a independência do Brasil deveria ser comemorada em 7 de setembro, 12 de outubro (dia da aclamação de dom Pedro I) ou 1º de dezembro (dia da coroação de dom Pedro I). Falar que a independência foi historicamente celebrada desde sua implantação é outro mito. Ela passa a ser exaltada no dia 7 de setembro somente no segundo reinado, reforçando a centralidade dos imperadores, isto é, o comando do Estado brasileiro por uma única pessoa. 

A independência trouxe profundas mudanças ao Brasil? Mais uma vez, não. A realidade social do Brasil continuou a mesma do período colonial. A estrutura social se mantém inalterada. Exemplos disso são a manutenção da escravidão, a profunda desigualdade social e os privilégios dos nobres.

O casebre que aparece na pintura existia na época? Não! Outro equívoco da obra é a presença de um casebre na cena chamada de Casa do Grito. Supostamente servia de parada de descanso para as tropas no trajeto chamado caminhos para o mar que ligava São Paulo a Santos. Até onde se sabe essa “casinha” não existia no local descrito na cena. Há rumores também que Pedro I passava mal neste dia, tendo em vista o consumo de alimentos estragados na viagem.

Por fim, Pedro I é uma figura central na independência? Também não. O quadro exalta a figura de Pedro e silencia a importante participação de Maria Leopoldina no processo de independência. Leopoldina, então princesa regente do Brasil, por conta de uma ausência de Pedro I, assinou o decreto da Independência, declarando o Brasil separado de Portugal. Embora ela tenha ficado nos bastidores do desligamento de Portugal com o Brasil, o seu papel foi, na verdade, de protagonista. Após a assinatura do decreto, ela enviou uma carta a D. Pedro para que ele proclamasse a Independência do Brasil. O documento chegou a ele no dia 7 de setembro de 1822. A postura de Leopoldina, ao se recusar a retornar a Portugal, ainda divide opiniões dos pesquisadores. Enquanto para um grupo de estudiosos aquela foi uma atitude revolucionária, para outros a princesa foi apenas estrategista. Independentemente dos motivos que fizeram Leopoldina permanecer no Brasil, a imperatriz deve ser interpretada como uma mulher importantíssima por ter sido a primeira a fazer política na alta esfera de decisões brasileiras.

A obra, na verdade, está fixada em nosso imaginário, após séculos de persistência de sua representatividade e, o papel dos professores de Ciências Humanas, é o de discutir e criticar esse mito ligados ao processo emancipação do Brasil para assim contarmos uma história do Brasil descolonizada.


Imagem de destaque: Independência ou Morte , Pedro Américo – Museu Paulista 

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