Contrato de confiança – afetividade em risco

Ivane Laurete Perotti

Em teu abraço eu abraço o que existe/ a areia, o tempo, a árvore da chuva/E tudo vive para que eu viva. (Pablo Neruda)

Tautológico é necessário dizer que o contexto pandêmico da SARS-CoV-2 expôs  virulências: ideológicas, emocionais, coletivas, pessoais. Formas truculentas e embrutecidas de repaginação das intransigências. Pré-existentes. Todas. Em latência de ato e fato. Comedões do tecido social: putrefatos e altamente transmissíveis.

Não se pode cobrar do vírus a morte da alma. Somos nós os falsários da vida. Travestidos de gentes, exercitamos o estrago das expressões humanas. Cegos, “enxergamos” tão somente através da lupa que nos recheia  vísceras e pensamentos. Esvaziados de sentidos, carcomidos pela ganância e indiferença, atrelamo-nos à sombra do próprio umbigo.

A quantas anda o umbigo da escola?

Bom seria encontrá-lo. Especialmente em curvatura frontal. Real. Reconhecendo-se.  Desburocratizando sombras e devaneios. Talvez, coerente com as diversidades, especificidades e outras tantas/ dades/ propositalmente ausentes das resoluções de gabinete. Quase uma necropsia escolar.

Bom seria encontrá-lo no devido lugar. Lugar da socialização, dever da escola. Lugar do desenvolvimento e da aprendizagem do sujeito em sua totalidade: cognitiva, motora, afetiva. Lugar da experiência emocional livre de adestramentos. A educação emocional deveria, obrigatoriamente, fazer  parte do currículo escolar e da formação docente, tanto quanto qualquer outro componente técnico, linguístico, científico. Para muitos estudiosos, a educação emocional envolve o espaço do “estar” no mundo, da sensação desse estar, do humor,  da afetividade, em relação direta com o processo da cognição, do aprendizado. E se este processo tem lugar no sistema escolar, por que corroboramos a sombra esquálida de um umbigo a descoberto? Nu em sua cavidade cavernosa? Exangue.

Porta de muitas passagens, a escola que conhecemos exige mudanças. Prementes. Urgentes. E uma delas é o recorte desta escrita: a educação emocional para a afetividade.

Entendida como uma ação para além dos cuidados para com os/as estudantes e da didatização de conteúdos, a afetividade é a capacidade do ser humano de ser afetado pelo mundo, dentro e fora dele (WALLON,1995), servindo de elemento propulsor às atividades da razão.

No umbigo da escola, razão e emoção trocam farpas. E tenho visto muitas delas. Sinto-as na carne. No apagamento das vozes. Nos projetos de embalsamento da realidade: morto, o  “real”  estatiza-se. Verte números. Regras inadequadas. Leis infrutíferas.  Nega-se a obra.  Colhe-se o resultado: um palco de violências. Violências planejadas. Comandadas. Des/orientadas. Exposição de muitas peças sociais: estragos realizados e impostos. Fabricação do medo em massa – manobras de uma doença letal. Desfecho da premência.

A escola enterra-se à sobra do próprio umbigo. Desabilitamo-nos da condição humana. Sem emoção, sem razão, desabrigamos também a vivência pedagógica da afetividade. Das vozes moduladas pelo serviço de guarida. Dos planejamentos a favor da integralidade do homem. Nós e eles/elas. Professores e estudantes esvaziam-se. Deixam de significar e apontam para um presente/futuro desastroso.

Dizem que as razões são óbvias: a escola não tem espaço nem tempo para afetos. Justificativa: a escola é lugar de limites. Aprender dói. Mesmo? Empacados em dores, assujeitamo-nos. Assujeitamos outros, negados e desconhecidos. Prova do quanto é fácil recortar discursos e aplicá-los em qualquer estampa: questão de segurança para os alunos, de prevenção para o professor (tão facilmente acusado de assédio). Professor e estudante são águas que não se encontram. Deslizam para longe do leito que os aproxima: deveria aproximar. Inaptidão? Incompetência? Proteção?

Estamos rasgando os contratos de confiança lavrados nas relações dentro da escola.    Escolhemos o “não reconhecimento do outro”; o “outro” constitui-se risco no reconhecimento de quem somos.  Reconhecer-se, dialógica e reflexivamente no “outro” constrói subjetividades. Desconstrói preconceitos, radicalismos, fascismos. Pode levar a movimentos por justiça social, dignidade, empatia, compaixão. Pode capacitar para a construção de uma escola justa. Equânime. Em reconhecendo o “outro”, reconheço-me. Alço a subjetividade encalacrada por séculos de deseducação. Torno-me  capaz de gestos e ações transformadoras. São riscos altos para as políticas de investimento nas segregações: carrancas das fomes plurívocas. Então, melhor que a escola permaneça conteudista, des/in/formadora, en/formadora, adestradora, e que impeça a vivência do cuidado e dos afetos. Dos afetos do cuidado. Do cuidado em afetos. Melhor cristalizar comportamentos. Engessá-los para controle e mercado. Discordo peremptoriamente! Assim, lavro aqui meu contrato de confiança: “Dentro de um abraço é sempre quente, é sempre seguro/ Tudo o que você pensa e sofre, dentro de um abraço se dissolve.” (MEDEIROS, 2011)

Para saber mais
MEDEIROS, Martha. Trecho da Crônica Dentro de um Abraço. In: “Feliz por Nada.” Porto Alegre: L&PM, 2011.

NERUDA, Pablo. Trecho de Soneto VIII. In: “Cem Sonetos de Amor.” SP:LPM Editores, 1997.

WALLON, H. A evolução psicológica da criança. Lisboa: Edições 70, 1995.


Imagem de destaque: Galeria de Imagens

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