Cidadania Análoga em um Estado de direito: uma reflexão a partir do (não)acesso das classes populares do campo à educação – exclusivo

Tatyanne G. Marques

Este texto é resultado de outros textos e das reflexões por eles suscitadas quando se pensa o (não)acesso das classes populares do campo à educação. Este não acesso parece tão naturalizado na história brasileira que esta reflexão pode se traduzir como desnecessária, todavia, pensemos: Se vivemos em um Estado de direito, por que os direitos não se concretizam igualmente para todos? Como os direitos podem codificar o “não” direito? Se a educação é um direito no Brasil, por que os povos pobres do campo não conseguem concretizar este direito*? Este breve texto se propõe analisar estas questões.

Em cada momento são variados os fatores que determinam o acesso desigual aos recursos, porém, existe um grande diferenciador que é a classe social ou, precisamente, a articulação desigual (e contraditória) da sociedade em classes sociais. (O’DONNELL, 1980). No contexto do Estado capitalista, a modalidade de apropriação do valor criado pelo trabalho constitui as classes mediante a relação social estabelecida por tal criação e apropriação. Assim, a posição de classe determina, em grande medida, essa desigualdade. Mas, além disso, surgem probabilidades diferenciadas de alcançar situações como prestígio social, educação, capacidade para ser “escutado” socialmente e influir ideologicamente, entre outros. É, nesta relação, que surge o Estado.

Nesta perspectiva, O’ Donnell (1980) diz que o Estado aparece como o fiador das relações nas sociedades de classe e atua como um não capitalista. Entretanto, o autor destaca que O ponto fundamental é que, se isto é assim, o Estado – como aspecto dessas relações e complexo objetivo de instituições – é o fiador de tais relações, e não dos sujeitos sociais que mediante as mesmas se constituem. “Isto significa que, o Estado não apoia diretamente o capitalista (nem como sujeito concreto nem como classe) mas a relação social que o faz capitalista” (O’DONNELL, 1980).

Isto quer dizer que os interesses do Estado não são neutros. Ele se objetiva em instituições – razão para que o Estado seja experimentado como exterioridade.  

Além das instituições, as objetivações também se concretizam por meios formais. O acordo de vontades, entre sujeitos considerados formalmente iguais, é um ponto notável do tecido de organização da sociedade capitalista por parte do Estado.  Este acordo se vincula ao direito moderno. No entanto, argumento que o direito racional-formal contém ambiguidades que expressam a sua vinculação contraditória com os níveis profundos da sociedade e, portanto, os direitos podem se codificar em “não” direitos.

Por que “não” direitos? Porque o Estado capitalista está fundamentado na cidadania, ou seja, na igualdade de todos os cidadãos – estes se caracterizam como sujeito jurídico capaz de contratar obrigações livremente. Só que esta liberdade ou igualdade é abstrata, ao pensar as políticas, pressupomos que elas devam ser universalistas ou generalistas. Neste sentido, Arroyo (2007) diz que “Nossa tradição inspira-se em uma visão generalista de direitos, de cidadania, de educação, de igualdade que ignora diferenças de território (campo, por exemplo), etnia, raça, gênero, classe”.

Neste sentido, a cidadania é análoga no Estado capitalista porque nega as fissuras estruturais da sociedade. Por exemplo, assumir a educação como direito de todo cidadão significou um avanço. Todavia, temos tido muitas dificuldades para avançar no reconhecimento das especificidades. Isto porque os sujeitos concretos vivenciam experiências de acesso desigual aos recursos.

No caso do Brasil, os jovens de classes populares do campo vivenciam uma cidadania análoga, uma vez que nem o acesso a este recurso eles têm. Mas não existem escolas para o cidadão do campo? Existem, porém, prioritariamente, nas cidades. Ou seja, o Estado garante o direito. Se o morador do campo quiser ter acesso a este direito, ele terá que se deslocar até a cidade para estudar. E isto só piora quando quiserem ter uma escolarização longa, pois, à medida que os níveis escolares aumentam, sua oferta no campo decai.

Portanto, argumento que é justamente o fato de vivermos em um Estado que é capitalista – que os ditos direitos podem codificar o “não” direito. Estabelece para todos o direito à educação, mas não permite que todos tenham as mesmas condições de acesso, muito menos que tenham sucesso (DUBET, 2003) e cheguem ao topo (universidade). Os sujeitos, nessa relação, todavia, não são e nem estão passivos. São eles que aproveitam das fissuras do Estado para abrir espaço, novos direitos.

Para saber mais:

ARROYO, M. G. Políticas de formação de educadores do campo. Cad. Cedes, Campinas, vol. 27, n. 72, p. 157-176, maio/ago. 2007.

BRASIL/MEC/INEP. Panorama da Educação do Campo. Brasília: MEC/INEP, 2006.

DUBET, F. A escola e a exclusão. Cadernos de pesquisa, nº 119, jul. 2003.

BRASIL/INEP. Sinopses estatísticas da Educação Superior – Graduação (2011).

McCOWAN, T. O direito universal à educação: silêncios, riscos e possibilidades. Práxis Educativa. Universidade de Ponta Grossa, v.6, nº 1, jan-jun, 2011.

O’DONNELL, G. (1980). Anotações para uma teoria do Estado. Revista de cultura política. Rio de Janeiro, Paz e Terra, V.3, Nov. 1980/Jul 1981.

Professora Assistente da Universidade do Estado da Bahia. Doutoranda em educação pela FaE/UFMG. Linha de pesquisa Educação, Cultura, Movimentos Sociais e Ações Coletivas.

*Quanto à localização, os dados do censo da Educação superior de 2011 (BRASIL, 2011) mostram que, no ano de 2009, apenas 4,3% dos moradores do campo tinham acesso a esse nível de ensino.

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