Carvoeiro fantasma – Amazônia em agonia

 Ivane Perotti

O suor escorria pelo rosto. Sobre os ombros, uma leva de madeira. Pulsavam suspiros na cacunda carregada. Anos e anos derrubando árvores conferiram-lhe um privilégio nefasto: ouvia o choro daqueles corpos. Os restos de seiva queimavam a pele. A floresta rugia lamentos diante do fogo das necessidades. Algumas árvores dobravam em idade a sua própria. Não aprendera as letras. Não tinha leitura. Se a vida lhe dera oportunidades, não as tomara para si. Trabalhava para a morte da floresta. Troncos e galhos alimentavam o forno de barro. Quando cheio de madeira viva e chorosa, barreava-se a boca com terra molhada. Um respiradouro marcava o lugar por onde o fogo alimentaria sua vontade e cuspiria a fumaça pesada. Fogo brabo. Culpado, o corpo dobrava-se no esforço para não vergar sob o peso que vinha de dentro. Os fantasmas das árvores rodeavam-no sem tréguas. Via e ouvia. Um dia depois do outro. Dias sem começo nem fim. As marcas de sua vida estavam todas ali, agarradas aos troncos que se queimavam e aos copos da branquinha. Bebia sim. Como todos os outros. Bebia ao cair da noite esperando não amanhecer o dia. Mas a vida era teimosa. Acordava mais iracundo a repetir-se quase vivo. Doía a alma de dentro para fora. 

Em dias de muito vento, sabia que, de um jeito ou de outro, alguém tentaria segurar a farinha no oco das mãos. Era aviso de rezinga. Briga certa. Tal como acontecera naquela noite de calor. Diante da lua prenhe. Embaixo dos ôio fechadu di deus!

Reunira-se com os demais carvoeiros para beber da pinga forte. Início de uma despedida. A cachaça encorpada descera rápido. Estômago vazio. Abrira buracos escuros na cabeça dos homens. Cansados de corpo. Cansados de morte. A desavença iniciou do jeito que sempre inicia: por motivo nenhum. Os facões brilharam. Cortaram a conversa. Carvoeiros tombaram sobre o chão imundo. O sangue voltava para o ventre da terra levando as almas brutas. Esgotava-se ali a caminhada de cada um deles. Tempo perdido na floresta. Tempo perdido na vida encruada no barreado que consumia os que ainda estavam em pé. Quem estava em pé naquele acampamento dos infernos? Viviam de pinga e dente. Facão e dívidas.

O dia não amanheceu diferente. Mas engoliu a noite em tragos ardidos. Tragos que agora queimavam a boca da alma. Não se faz velório em terra de homens sem lei. Embaixo de muitos palmos, o corpo volta para o sem lugar. Lá estavam eles. Todos. Alguns, antes. Outros, antes ainda. Companheiros de queimada. Sem pertences. Sem pertencimentos. O que sobrara deles. Ou aquilo que jamais lhes pertencera.

O fogo pedia alimento. Outras árvores arregaçavam raízes. Os tratores avançavam. Famintos. Esteiras da morte. Ouvia os pedidos por clemência. Um socorro que jamais chegaria. Ninguém seria salvo. A floresta agonizava deixando um rastro de feridas abertas. Postas de madeira morta. Ele via. Via. Ouvia. A cabeça latejando desde a noite anterior. Cachaça. Cheiro do sangue derramado. Os pensamentos embrulhados em ovo. Variava das ideias. Não queria barrear o forno recém-construído. Desejava deitar o corpo. Deitar para sempre. O túmulo da Floresta Amazônica abria-se, abria-se. Sem rezas. Sem política de homem limpo. A morte entrava por onde o céu perdera o limite. Perdidos. 

No tosco acampamento, carvoeiros prestavam silêncio. A morte pesa. O silêncio contempla. Mortos tapam buracos. Viram comida pros bichu di baxu. Ainda beberiam os defuntos, mas só depois de alimentar as bocas fumegantes dos fornos abobadados. Erguidos a mãos e bestas, alimentavam a mesa dos infernos. Faziam arder a terra virgem. A Amazônia pedia clemência. Socorro! Nem homem. Nem reza. Nem política de proteção. Nem homem de tento e letra. Nem letra fichada à mão. 

Foi um dia mais escuro do que costumavam ser escuros os dias. À hora da beberagem, os nomes dos carvoeiros saltavam de boca em boca. Uma cuia da temida. Um trago para a despedida. Outra garrafa para os brios. De certo ninguém ficara. Os mortos levaram a queixa. Do túmulo cavado às pressas, a terra descia o vão. A noite vinha. Chegava sem medo. A escuridão do dia engolia a escuridão da noite. Bebiam os companheiros. Era pau e pedra. A caninha descia venenos e subia comendo a razão. Anuviava os olhos que se perdiam por outros lugares. Outras florestas, ou sabe-se lá por onde o sujeito andara. A cachaça não era amiga dos segredos. Abria a porta do esconderijo. Queimava o presente nas plagas da ilusão. Conhecia o sentimento de pisar em nuvens. Buracos. 

Deixou a cabeça pender sobre o peito. A boca sem apertar os lábios. Dentes frouxos. Faca à mão. Mirou os pés descalços: aquele torrão de pele seca que se enfiava por debaixo da terra. Matuto. Bicho criado. Era assim que a vida o levava. Era assim que levava a vida! 

Imagem de destaque: Ollivier Girard / CIFOR

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