As manhãs de segunda

Daniela Perri Bandeira

Sou a professora das manhãs de segunda, do primeiro horário ainda não muito acordado pelos alunos e alunas do Ensino Superior que chegam, aos poucos, na sala de aula. Sou a professora de futuras professoras alfabetizadoras e alguns poucos alfabetizadores. No primeiro encontro de todos os semestres, com meus novos alunos, repito sempre as mesmas palavras porque acredito nelas: a professora precisa encantar o aluno para que este deseje voltar à escola, deseje aprender, nem que seja só para agradar à professora. Desejar  é o começo…

Tive a consciência desse desejo ao ler as obras de Bartolomeu Campos de Queirós porque, na verdade, a experiência do desejo já estava em mim. Na infância, fui conquistada, encantada por muitas professoras, o que me despertava o desejo de aprender. Queirós nos conta de sua admiração pela primeira professora, Dona Maria Campos. Nas palavras do autor: “Nunca soube se precisava mesmo de suas lições ou de seu carinho. E isso ela bem me presenteava. Eu aprendia para ela”. (QUEIRÓS, 2012, p.24) (grifo nosso).

Porém, despertar o real desejo no outro é algo muito complexo nos dias atuais. Professores “concorrem” com inacreditáveis artifícios de “ensinagem” com muitas cores, sons e movimentos. E, por  ironia, os professores foram parar dentro desses artifícios, nesse atual contexto de pandemia.

E, voltando ao primeiro encontro presencial de cada semestre, ao afirmar sobre a necessidade de despertar o desejo no outro, a  pergunta que, instantaneamente, se voltava para mim era sempre a mesma: como encantar a criança? Claro que não há fórmulas para isso. Mas existe a literatura. Eu os aconselhava a ler histórias para as crianças. Mas eu precisava provar que isso funcionava. Então eu lia histórias no primeiro horário das manhãs de segunda.

Há quase vinte anos, venho fazendo assim e, por coincidência ou não, sou a professora das segundas. Decidi ler livros classificados como infantojuvenis para  alunos/as do Ensino Superior. Eu desejava que eles/as desejassem conhecer bons livros para encantar suas crianças e também acreditava que a verdadeira literatura não tem destinatário, como diz Queirós (2012,p.56) “[…] eu comecei a pensar que a literatura para criança era uma literatura apenas que permitisse também às crianças um outro nível de interpretação, mas que o adulto pudesse se aninhar naquele texto, da sua maneira também […]”.

O meu desejo era que os meus alunos se aninhassem nos textos que eu lia, se encantassem com as histórias, se emocionassem, conhecessem muitos autores para que pudessem “capturar” o desejo de aprender das crianças.

Escrevendo aqui sobre essa experiência, posso contar dos alunos que chegavam correndo na sala de aula, me perguntando: “Professora, você já contou a história”? É  encantador ver os olhos de alunos adultos brilharem ao desejar uma história. Então, meus adultos queriam histórias, não só nas manhãs de segunda.

Entre tantas experiências, posso dizer que eles/as faziam as “Receitas de Olhar” de Roseana Murray; dialogavam com “Pinóquio: o livro das pequenas verdades” de Alexandre Rampazo; encontravam as memórias perdidas de Dona Antônia junto com “Guilherme Augusto Araújo Fernandes” de Mem Fox; falavam de seus medos  ao conhecer “O casaco de Pupa” de Elena Ferrándiz; riam às gargalhadas e se emocionavam com o “dicionário” criado pelas crianças da “Casa das estrelas”, de Javier Naranjo; aprendiam a escovar palavras com as “Memórias inventadas para crianças” de Manoel de Barros; aprendiam que “O tempo […] muda a história, desvia águas, come estrelas, mastiga reinos, amadurece frutos, apodrece sementes. Nada fica fora do tempo” (QUEIRÓS, 2009, p. 9) do livro Tempo de Voo.

E aqui escrevendo este texto me pergunto por que conto essa experiência como algo passado, distante? Acho que porque nessa pandemia fui capturada pelos tais inacreditáveis artifícios tecnológicos. Eu que gostava tanto de identificar olhos cheios de sentimento na sala de aula; olhar de verdade para o aluno. Agora, neste modelo de ensino remoto, não consegui atravessar a tela que nos separa. Mas continuo acreditando que o professor precisa encantar os alunos para que estes venham a desejar as manhãs de segunda.

Referências:

BARROS, Manoel de. Memórias inventadas para crianças. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2006.

FERRÁNDIZ, Elena. O casaco de Pupa. Tradução: Maria krusero. São Paulo: Jujuba, 2011.

FOX, Mem. Guilherme Augusto Araújo Fernandes.Tradução: Gilda Aquino. São Paulo: Brinque-Book, 1995.

MURRAY, Roseana. Receitas de olhar. São Paulo: FTD, 1999.

NARANJO, Javier. Casa das estrelas: o universo contado pelas crianças. Tradução: Carla Branco. Rio de Janeiro: Foz, 2013.

QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. Tempo de vôo. São Paulo: Comboio de Corda, 2009.

QUEIRÓS, Bartolomeu Campos de. Sobre ler, escrever e outros diálogos. Júlio Abreu (org.) Belo Horizonte: Autêntica, 2012.

RAMPAZO, Alexandre. Pinóquio: o livro das pequenas verdades. São Paulo: Boitatá, 2019.

Imagem de destaque: Participantes da 12ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil https://zp-pdl.com/online-payday-loans-in-america.php zp-pdl.com https://zp-pdl.com/best-payday-loans.php http://www.otc-certified-store.com/women-s-health-medicine-usa.html

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