A quem interessa o ensino domiciliar?

José Heleno Ferreira

Vivemos tempos difíceis, marcados pelo ataque aos direitos humanos e pela criminalização daqueles e daquelas que lutam pela garantia do bem-estar, do bem viver para todas as pessoas. A educação, mais especificamente a educação pública, tem sido alvo constante destes ataques.

A redução drástica de investimentos que busca sucatear as universidades e as escolas de educação básica, o negacionismo científico, as tentativas de amordaçar profissionais docentes são algumas das faces desta moeda perversa. No que diz respeito à educação básica, um dos ataques que neste momento se faz é através do projeto de lei 2401/19, em tramitação no Senado Federal, que dispõe sobre o exercício do direito à educação domiciliar. O referido projeto de lei, no seu artigo 2º, determina “a plena liberdade de opção dos pais ou responsáveis entre a educação escolar e a educação domiciliar”. Determina ainda que as crianças e adolescentes cujas famílias optarem pelo ensino domiciliar serão submetidas a uma avaliação anual, na qual buscar-se-á verificar a aprendizagem a partir dos conteúdos, habilidades e competências definidas pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para cada ano de escolaridade.

São muitos os questionamentos que precisam ser feitos em relação à proposta. A escola não pode ser compreendida exclusivamente como uma instituição responsável pela transmissão de informações. Seu papel vai muito além disso. A socialização da criança e do adolescente passa pela escola, pelas salas de aula: é ali, muitas vezes, que o menino e a menina têm, pela primeira vez, a oportunidade de conviver com um grupo extrafamiliar. Tal processo é, sem dúvida, muito importante para a construção de sua autonomia.

Além disso, é preciso reconhecer que a escola pública, no Brasil, muitas vezes, é o único equipamento público ao qual muitas comunidades têm acesso. É neste espaço também que as e os estudantes poderão se reconhecer como sujeitos de direito, poderão aprender a dialogar com aqueles e aquelas que têm opiniões e compreensões de mundo distintas de seus núcleos familiares. Trata-se, pois, de uma experiência fundamental para que desenvolvam o senso crítico, sendo confrontados e confrontadas com pontos de vista distintos, com experiências que lhes permitam ampliar seus horizontes.

Há que se questionar também o fato de que pais, mães e responsáveis pelas crianças e adolescentes não podem ser transformados(as) em tutores(as) ou professores(as). O exercício da profissão docente requer uma formação acadêmica e científica. Neste sentido, no bojo da proposta percebe-se a presença do negacionismo científico tão presente nas medidas governamentais no momento em que vivemos no Brasil. E, obviamente, a proposta traz em si também a desvalorização da docência e de todas e todos que se dedicam a esta tarefa.

Ainda mais: é preciso reconhecer que a escola básica exerce um papel fundamental quanto à proteção da infância e da adolescência. Para ficarmos em apenas um ponto, podemos lembrar que estudos e pesquisas diversos afirmam que grande parte dos casos de pedofilia acontecem no âmbito familiar e que muitos só vêm à tona a partir da observação de um professor ou professora ou a partir da denúncia feita pela criança no espaço escolar.

Por que, então, defender o ensino domiciliar?

O texto de justificativa do projeto de lei afirma que o ensino domiciliar é também uma medida de economia: “tendo em conta que, segundo estudos, o reconhecimento do homeschooling poderia reduzir os gastos públicos com a educação”. Ora, como se já não bastasse definir o investimento em educação como gasto, afirma-se o ensino domiciliar como uma forma de reduzir o custeio da educação escolar. Mas para além disso é preciso perceber os interesses econômicos dos grupos que veem no ensino domiciliar uma fonte de lucro, haja vista os anúncios de materiais destinados às famílias que optarem por manterem seus filhos e filhas em casa que começam a ser veiculados na imprensa. Ou seja: são muitos os que vislumbram, no ensino domiciliar, uma oportunidade de ampliação de seus lucros num processo de mercantilização da educação.

O direito à escolarização é uma conquista da sociedade brasileira – conquista esta ainda não plenamente efetivada. Foram muitas as lutas populares, a partir dos anos 1980, para que conseguíssemos ampliar o acesso à educação básica. A defesa do ensino domiciliar fragiliza o direito à escola. A escola pública vem se construindo, nas últimas décadas, como um espaço aberto à diversidade à medida em que as pessoas com deficiência, as crianças pobres, as negritudes, os povos originários, adolescentes que não se enquadram nos padrões heteronormativos se percebem como sujeitos de direito e reivindicam a presença no espaço escolar. Não podemos retroceder – pelo contrário, há muito que avançar na luta em defesa de uma escola pública laica, inclusiva, de qualidade socialmente referenciada, onde caibam todas e todos! Há que se perceber que a escola pública é um instrumento importante para que se efetive o que determina o artigo segundo da Declaração Universal dos Direitos Humanos: o direito a ter direitos, “sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento ou qualquer outra condição”.

 

Sobre o autor
Filósofo. Doutor em Educação (PUC MG). Professor na Rede Municipal de Ensino de Divinópolis. Presidente do Conselho Municipal de Educação de Divinópolis.


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