Aleluia Heringer Lisboa
Naquela tarde de 1968, primeiro dia de aula, chorei muito. Não queria ir para a escola. Criança criada no meio do mato tinha medo daquele mundão desconhecido e de gente grande. Agarrei a minha irmã, enquanto a servente, na porta da escola, tentava me convencer a entrar. Voltar para casa? Nem pensar. Meu pai não negociava com a moleza. O seu “não” ou o seu “sim” tinham densidade, largura, profundidade e peso! Tinha que enfrentar. O jeito era entrar. Tinha vergonha do meu nome e medo dos colegas. Com as mãos suando frio, aguardei o momento mais temido, em que a diretora, Dona Adélia Rezek Braga, fazendo a chamada das turmas para a fila, leu, o meu nome, em alto e bom tom: Aleluia Heringer Lisboa! Foi como ser jogada na cova dos leões! Com todo o desconforto físico e emocional, entrei para o 1º ano do Grupo Escolar Afonso Pena em Belo Horizonte.
Hoje, depois de tantas décadas, esta passagem me volta à mente. Emblemática, para não dizer, traumática, ela delimita a minha passagem da vida privada para a pública. Neste sentido ela ainda fala. Ela ainda ensina.
Primeiro que a caçulinha da família seria um nome a mais em uma listagem de 30 alunos. Clara indicação do espaço público: aqui somos todos iguais. A ordem da chamada seguia e até hoje segue, unicamente, a ordem alfabética.
Segundo que, cada família tinha um jeito próprio de educar o seu filho e filha, com diferentes recursos. Havia colegas ricos e pobres. Alguns levavam merendeiras com lanches “de padaria”, outros, não tinham outra opção a não ser o lanche oferecido pela própria escola. O uniforme, apesar de ser o mesmo, diferenciava no tecido ou no tipo de agasalho. O material escolar idem. Estojos de lápis de cor com 6, 12, 18 ou 24 cores. Tudo ia depender do nível socioeconômico de cada família. Sinais de distinção. Ainda assim, as regras valiam para todos. Não havia príncipes e nem princesas, nem reis e nem rainhas. Todos ali recebiam tratamento de povo.
Era assim nas relações conflituosas com os colegas, nos desafios que a rotina escolar impunha, com a mínima interferência dos adultos, que as crianças aprendiam, ganhavam autonomia, e “desembestavam”, como se dizia. Uma casca protetora formada de fibras resistentes, revestia o frágil ser que ganhava, com o passar dos anos, a desenvoltura e a segurança para se apresentar, se defender, falar, tomar decisões e resolver seus próprios problemas. A postura firme do meu pai, naquele momento, em não aceitar minha fraqueza e nem pintar de cor de rosa a situação foi decisiva na formação do meu caráter e na minha atitude perante a vida.
A dor é uma disciplina fundamental. Chamo de “dor” a esse conjunto de fatos e circunstâncias que nos desinstalam e que podem trazer apreensão, tristeza ou desconforto. Em todo o tempo de nossa existência, do nascimento até a maturidade, estamos vulneráveis às doenças, à violência urbana e ao descaso do próximo. Nem todas as coisas acontecem da forma e no tempo que gostaríamos. Hoje estou aqui, não sei se estarei no minuto seguinte. Quão frágil é nossa vida, ao mesmo tempo, como ela é complexa!
Se a dor é inerente ao ser humano, como contribuir na formação de nossas crianças e jovens para enfrentar esses momentos?
Uma das formas que temos para educar para a dor é não negar a sua existência. Deseducamos e desprotegemos quando retiramos do caminho de nossos filhos os problemas que, de uma forma muito sábia, aparecem na medida ou na proporção de cada idade. A criança de quatro anos diz: “Meu colega me chamou de chato”. Esse é um problema do tamanho da criança, que irá elaborá-lo e buscar interiormente elementos para resolvê-lo. Se a família interfere tentando pensar e resolver por ela, irá retirar-lhe a rica chance de crescer. Erramos quando amortizamos ou neutralizamos esses pequenos exercícios.
Infelizmente, com a melhor das intenções, cuidamos de nossos filhos de forma a retirar do seu caminho qualquer traço de tristeza, problema ou decepção, entretanto, a vida nos ensina, que nem sempre teremos pessoas dispostas a retirar as pedras que iremos encontrar pelo caminho. Não existe gente de verdade, de carne e osso, se não tiver passado também pela experiência da perda e da dor.
Quando olho para trás, percebo que boa parte daquilo que aprendi sobre a vida, foi forjado na ausência e na falta. Acredito que muitos compartilham dessa verdade, principalmente aqueles que vieram de uma infância de família numerosa ou com limitações financeiras. Isso não quer dizer que esse é o único e melhor caminho, mas, com certeza, é um contraponto ao quadro atual marcado pelo excesso, seja ele de conforto, de comida, de lazer “comprado”, de roupas ou brinquedos. Retiramos do nosso vocabulário as palavras necessidade, luta, busca, restrição ou espera e, trocamos por outras que só indicam facilidades. Com isso, a tristeza virou depressão; desentendimento natural entre colegas virou “bullying”; ouvir um “não” virou intransigência; o limite virou perseguição. Tudo isso existe e, portanto, como adultos e educadores, precisamos acompanhar de perto esses processos, coibir os exageros, a opressão do mais forte sobre o mais fraco, e mais do que isso, servirmos de exemplo de conduta, de cordialidade e de respeito.
Que possamos fazer dos pequenos, mas significativos desafios postos pela vida, um momento de aprendizagem que sirva para lidar com a vida e que siga para toda a vida.