Sobre ismos, EJA e os atravessamentos.

Douglas Tomácio
Rosilene Alves

“Também a experiência, e não a verdade, é o que dá sentido à educação. Educamos para transformar o que sabemos, não para transmitir o já sabido. Se alguma coisa nos anima a educar é a possibilidade de que esse ato de educação, essa experiência em gestos, nos permita liberar-nos de certas verdades, de modo a deixarmos de ser o que somos, para ser outra coisa para além do que vimos sendo.” (Jorge Larrosa Bondía)

Há algum tempo, compreendemos que ao longo dos anos de estudos e partilhas vamos sedimentando, entendemos que trabalhar com a EJA é abrir também espaço para a discussão que toca o corpo. O nosso próprio: atravessado, interseccionado, concebido por nós e pela alteridade; inclusive no vilipendioso jogo que transforma diferenças em desigualdades.

Nele e tendo-o, assumimos as discências e docências que na EJA se enredam, sejam eles mais ou menos velhos, mais ou menos novos, mais ou menos marcados. Mas sempre corpos, compostos por histórias que, ali somadas, enunciam as violências tantas que, também mais ou menos, se anunciam na embargada voz: “professor, eu não gosto de sexo. Quando meu marido quer me tocar, eu gelo e tremo… não quero. Ele sabe. Nunca quis. Mas sempre acontece. Eu disse que ele pode procurar alguém na rua, mas, pela religião, ele não acha certo. Eu não posso me separar, me casei até que a morte nos separe”. 

Um corpo-mãe, responsável por rebento de violação socialmente chancelada, ali ecoa sua história. Nela, ainda tomados pelo assombro, nos damos conta daquilo que nos forma, do que é nossa EJA em sala – repetida inúmeras vezes nas mulheres outras que, doídas, dizem sem vozear algo.

A EJA, historicamente mulher, pobre, preta, toma corpo. Corpos. Vocifera. Interseccionalizada, é religião imposta, estupro, violência cotidiana. É choro que irrompe, mas que, ao tocar do sinal, assume a sina silenciosa na sua casa. Espaço-lugar de “função dada”, assumida, “divinamente instituído”, o mesmo que antes a fez afastar-se dos estudos e da “chance de ser alguém na vida”. Resilientes, voltam elas como quem sonha com a escrita das histórias novas em escolas-EJA-suas.

Machismo, racismo, etarismo, ismos e fobias mais têm carne, têm marca, têm corpo. Têm e são também EJA, nos lugares tantos que podem assumir; do violentado ao algoz. Silenciarmo-nos nesse cenário é permitir que se avolumem, que tomem os poros e corpos em esperança, naturalizando o nefasto, matando o afável, fazendo surgir rebentos de grito-horror-silêncio.

Um desafio se impõe, precisamos educar para transformar o que sabemos. Afinal, em muitos casos, o já sabido não deve ser transmitido. Na verdade, sequer deve ser tolerado.

Nos mais variados entrecruzamentos que enunciam nossos corpos, ao firmarem nosso tempo, história, etnia, crença, orientação sexual, condições socioeconômicas (dentre tantos outros dizeres que, não nos enganemos, não escapam), está o desafio proposto por Larrosa (2002): liberar-nos de certas verdades. Estas que, em diálogo com o obscurecimento da compreensão, a exemplo do que nos postula Cortella (2019), nos fez e faz crer em arquétipos do “verdadeiro saber”, erigidos a partir de raptos semânticos, com os quais capturam também nossa humanidade.

Como bem apontou Larrosa (2002), parece mesmo que educar anda de mãos dadas com o ato de transformar aquilo que já se sabe. De modo que paremos, pensemos, olhemos e escutemos, demorando nos detalhes, cultivando a atenção delicada de quem abre olhos, ouvidos e suspende os automatismos. De mãos dadas, uma EJA outra se pode e deve assinar, e que seja sem quê de sina compartilhada, mas aprendida e retomada ao fim da aula.

Nesse lugar de câmbio insistente (sonhemos em luta), poderemos transformar o sabido para deixar também de ser o que somos e temos sido enquanto sujeitos, discentes, docentes, EJA. Esperancemos!

Sobre os(as) autores(as)
Douglas é Historiador, Pedagogo. Professor do Departamento de Educação (DE-Ibirité) e da Faculdade de Educação (FaE) da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). E-mail: dtlmeduc@gmail.com

Rosilene é Educadora, graduada em Pedagogia pela Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). E-mail: rosilene.1393673@discente.uemg.br

Para saber mais 
BONDÍA. Jorge Larrosa. NOTAS SOBRE EXPERIÊNCIA E O SABER DE EXPERIÊNCIA. Revista Brasileira de Educação [online], nº 19. 2002.

CORTELLA, Mário Sérgio. A Escola e o Conhecimento: fundamentos epistemológicos e políticos. 15. ed. São Paulo: Cortez, 2019.


Imagem de destaque: Galeria de Imagens

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