Educação Escolar Indígena como direito fundamental dos Povos Originários

José Heleno Ferreira

Há um provérbio tradicional, originário da África Ocidental, que afirma nunca ser tarde para voltar atrás e buscar o que foi esquecido ou o que foi ocultado por forças repressoras de qualquer ordem. Deste provérbio, origina-se o conceito Sankofa, que tem como significado a importância de voltar ao passado para compreender o presente e evitar que os mesmos erros sejam cometidos no futuro. Numa livre associação, poder-se-ia dizer que sem o retorno ao passado não é possível libertar-se das amarras que impedem a liberdade. Desta forma, o retorno à própria história é essencial para que saibamos quem somos e possamos nos orientar para a construção do futuro com o qual sonhamos. Em mais uma analogia, poder-se-ia afirmar que o passado precisa ser revisitado, que há coisas que precisam ser lembradas para que nunca mais se repitam, tal como nos lembra o filósofo Theodor Adorno ao afirmar a tarefa primordial da educação: para que Auschwitz nunca mais aconteça.

Reconstruir a própria história é um dos princípios que orienta o Povo Kaxixó, originário da região Centro-Oeste de Minas Gerais, que vive atualmente na aldeia Capão do Zezinho, às margens do rio Pará, no distrito de Ibitira, município de Martinho Campos – MG. Durante muitos anos foram obrigados a negar a própria identidade como forma de se defender da violência daqueles que invadiram suas terras. Apenas nos anos finais do século XX, sob a liderança do Cacique Djalma, o povo se reorganiza e busca, na reconstrução de sua própria história, forças para resistir à aculturação imposta durante séculos, rompendo, assim, com o “segredo encapado” – uma referência à identidade Kaxixó no longo período em que assumi-la significava risco à vida.

O reconhecimento da etnicidade Kaxixó data de 2003 e a demarcação de suas terras ainda não foi alcançada. Juntamente com a luta pelo direito à terra, os Kaxixó buscam cotidianamente o fortalecimento dos laços que os unem. E uma das formas de fortalecer esta luta é o reconhecimento da própria história, das marcas identitárias que compõem o povo. Nesse sentido, trata-se de uma experiência que evidencia a relação vital entre a valorização do patrimônio cultural, da memória e da história para a efetivação dos direitos fundamentais do Povo Indígena, assim como de qualquer outro povo.

O Memorial Cacique Djalma, construído na casa em que ele viveu os últimos anos de sua vida, o antigo Cruzeiro, o trabalho de reconstrução da própria língua pela Escola Estadual Indígena Kaxixó Taoca Sérgia e a Pedra Encantada são referências culturais que fortalecem o povo na batalha incessante pelo reconhecimento de seus direitos à terra e à própria história.

As festas populares, como o Festival do Pequi, realizado anualmente, a festa de São Pedro, a celebração do dia de finados são momentos de encontro da comunidade que contribuem para a manutenção dos vínculos entre todos os membros da aldeia.

Por outro lado, a educação para o uso do território, para a preservação ambiental e para (re)conhecimento e valorização do cerrado – seus frutos, flores e raízes – anunciam a vida que se busca organizar na aldeia a partir da reconquista das terras que lhes foram usurpadas.

Uma das referências culturais importantes na aldeia é a Escola Estadual Indígena Kaxixó Taoca Sérgia, na qual estão matriculadas as crianças da educação infantil, os meninos e meninas do ensino fundamental do primeiro ao nono ano. Todo o corpo docente e administrativo da unidade escolar é indígena, o que contribui para que a educação escolar seja pensada a partir da realidade da aldeia.

O currículo escolar é composto pelas disciplinas tradicionais do processo de escolarização no Brasil, além das disciplinas Uso do Território, Língua Kaxixó, Direitos dos Povos Indígenas. Nos últimos dois anos, a comunidade escolar vem se organizando para elaborar um currículo que tenha como princípio a interculturalidade. A ideia motriz é a de que as crianças e adolescentes indígenas têm direito à escolarização formal, ao conhecimento científico, mas também ao conhecimento de suas origens, de suas próprias histórias para, desta forma, se fortalecerem para continuar a luta. “Kaxixó, a luta que não acaba” é o refrão de uma das canções entoadas pelo povo nos momentos de festa. Mais do que um refrão: é a certeza de que a luta será contínua e continuamente precisarão se preparar para enfrentá-la.

Sobre o autor
Filósofo, doutor em Educação, professor de Ciências Humanas da Rede Pública Municipal de Divinópolis. Membro do Conselho do Patrimônio Cultural e presidente do Conselho Municipal de Educação de Divinópolis.

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DO SILÊNCIO, AO CANTO DOS ANCESTRAIS
Reprodução da tela de Geralda Guevara, artista NAIF de Divinópolis MG, retratando o Festival do Pequi realizado na aldeia Kaxixó em 25 de fevereiro de 2023.
Foto: José Heleno Ferreira – 11 de março de 2023


Imagem de destaque: Galeria de Imagens

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