Privatizar a gestão escolar: uma afronta ao princípio da gestão democrática

Edilson da Silva Cruz 

Em nosso artigo anterior, descrevemos o PL 573/21, projeto de lei em tramitação da Câmara dos Vereadores de São Paulo que prevê a terceirização das gestões das escolas municipais de ensino fundamental na cidade. Estas seriam entregues à OSs, que teriam autonomia para definir seu projeto político-pedagógico e seus profissionais (professores, gestores etc.). Neste artigo, vamos entender como o princípio constitucional da gestão democrática do ensino público é negado com este projeto.

A Constituição Federal define a “gestão democrática do ensino público, na forma da lei” (Art. 206, VI) como um princípio estruturante da educação básica no Brasil. A LDB (Lei 9.394/96) o detalha, atrelando-lhe outros dois princípios: a participação dos profissionais da educação na elaboração do PPP da escola e da comunidade escolar em conselhos escolares ou equivalentes. (Art. 14). Além disso, segundo Paro (1998), a LDB aborda o tema ao considerar condições de trabalho na escola e sua autonomia (Art. 4 e 15), embora não defina a formação e escolha dos seus dirigentes, os quais, para o autor, deveriam ser eleitos pela comunidade e considerar formação atrelando mais licenciaturas e cursos de pedagogia.

A Rede Municipal de Ensino de São Paulo (RME-SP) adaptou-se ao princípio da gestão democrática, ao consolidar conselhos escolares deliberativos e a participação dos docentes na elaboração do PPP. Em 1992, a gestão Luiza Erundina, com Paulo Freire secretário de educação, chegou a propor eleições para diretor de escola, mas a proposta foi rechaçada pela rede, que preferiu manter o concurso público como forma de provimento desses cargos. A garantia da jornada básica de formação, a manutenção do concurso, as negociações salariais que alcançaram ganhos acima da inflação são conquistas das últimas décadas, mantidas por diferentes governos, em que pesem as tentativas de derrubá-las. Assim chegamos ao Plano Municipal de Educação (Lei 16.271/15), que estabelece como meta o aprimoramento da gestão democrática, a garantia de recursos financeiros e apoio técnico para ampliar o controle social, o fortalecimento dos conselhos escolares, grêmios estudantis e da própria gestão democrática das escolas, em seus aspectos pedagógicos, administrativos e financeiros (meta 12 e seus 12 objetivos).

Ora, em que medida o PL 573/21 dialoga com o princípio da gestão democrática, conforme a CF/88, a LDB/96 e o Plano Municipal de Educação (2015)?

Em primeiro lugar, consideramos que o princípio da gestão democrática diz respeito à participação social na definição dos rumos e das políticas públicas aplicadas na e pela escola. É assim que entendemos a exigência de participação dos docentes na elaboração do PPP e da comunidade em conselhos escolares. Na RME-SP, ambas possibilidades existem e são garantidas em lei. Ora, o PL 573/21 ataca diretamente essa participação, ao definir que as OSs terão autonomia para “estruturar a matriz curricular, o projeto político pedagógico, as metodologias de ensino e organização escolar, assim como os materiais pedagógicos da escola assistida”. Com isso, nega-se a condição dialógica desse planejamento, ao não prever a participação de docentes e da comunidade em sua definição. Em decorrência disso, ataca-se a autonomia das escolas, uma vez que estas, entendidas como o conjunto dos sujeitos que dela fazem parte, passam a ser geridas por um modelo centralizador e autoritário, aos moldes de empresas privadas, em que um grupo limitado de dirigentes define metas e objetivos e apenas controla o trabalho dos subordinados.

Em segundo lugar, o caráter democrático da gestão, na RME-SP, passa pelo modo como são escolhidos seus dirigentes escolares: o concurso público de acesso. Embora não seja considerado o modelo ideal por muitos autores, é a forma como se garante a estabilidade profissional aos diretores, sua desvinculação ideológica ao governo de plantão e sua autonomia para implementar a gestão democrática, ao lado da comunidade escolar. O PL 573/21, ao conceder às OSs a autonomia para “montar e gerir o time de professores, diretores, vice-diretores e secretário escolar”, anula esta conquista dos profissionais da educação municipal, garantida em 1992 e reafirmada em 2007, na reestruturação do Estatuto do Magistério (Lei 14.660/07). Se aprovado, nenhum diretor terá autonomia para definir onde trabalhar e não se garante que, futuramente, mantenha-se o concurso de acesso como forma de provimento dos cargos. O concurso de acesso pode não ser o modelo mais democrático, mas o PL 573/21 constitui-se num retrocesso, uma vez que traz a possibilidade de que os cargos de gestão escolar voltem a ser providos por escolhas políticas, conforme as conveniências da relação entre OSs e partidos políticos no poder.

Por fim, pontuamos a impossibilidade de cumprimento do PME com este projeto, uma vez que a participação e controle social, principais pautas da Lei 16.271/15, são negadas. Conselhos escolares são esvaziados, profissionais da escola deixam de ter voz na definição de seu PPP e a gestão democrática, em seus aspectos pedagógicos, administrativos e financeiros, é eliminada pelo processo de terceirização.

Tudo isso acarreta a completa desvalorização dos profissionais da educação municipal paulistana, em afronta a outro princípio constitucional da educação básica no Brasil. Este assunto desenvolveremos em nosso próximo artigo.

Para saber mais
PARO, V.  O princípio da gestão escolar democrática no contexto da LDB. Revista Brasileira de Política e Administração da Educação, Porto Alegre, v. 14, n. 2, jul./dez/1998, p. 243-251. Acesse aqui.


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