Das violências e potências da Educação Física escolar nas relações de gênero

Talita Machado Vieira

O ruído dos pés batendo contra o chão em marcha acelerada se misturam às discussões calorosas sobre os acontecimentos no último jogo da sala. A sinfonia que circunda as aulas de Educação Física escolar é inconfundível. Entre os debates sobre os lances duvidosos, os desafios e provocações, uma constante: meninos vão para a quadra jogar futebol enquanto as garotas circulam para sentarem-se em algum canto, brincar de voleibol ou damas em algum espaço paralelo. A bola de futebol já está nas mãos daqueles que, supostamente, seriam detentores do direito nato sobre ela, quando um acontecimento perturba a cena habitual. Uma garota se aproxima e pede para também participar do jogo. Um grande debate se instala no grupo: alguns são veementemente contrários ao que consideram um grande disparate; outros manifestam certa indiferença à sua presença, desde que fique no time mais forte para que nenhuma equipe seja prejudicada; há ainda uns poucos que alegam a completa falta de sentido em que tal solicitação ainda pudesse ser responsável por gerar tanto burburinho. Enquanto isso, a garota, parada em frente ao grupo, aguarda o que parece ser a promulgação de uma sentença.

A Educação Física, assim como o esporte, atua como parte das tecnologias de gênero das quais nos fala Teresa De Lauretis. Desse modo, a participação de meninas e mulheres nas práticas esportivas, sobretudo àquelas socialmente consideradas como de áreas de reserva masculina na cultura brasileira, envolve uma inevitável negociação. Nas conversas com as atletas que participaram de minha pesquisa de doutorado, a relevância da Educação Física escolar no contato inicial com a modalidade foi unânime. O caderno 2 do Diagnóstico Nacional do Esporte, publicado em 2016, reitera a importância da escola na socialização esportiva das garotas. De acordo com o documento, dentre os homens, 53,1% declararam terem praticado esporte em algum momento da vida, sendo que 19,7% deles se disseram praticantes no período escolar. Já entre as mulheres, 37,1% relataram já ter experienciado a prática esportiva. Dentre essas, para 36% tal experimentação se deu durante o período escolar. Assim, percebemos a escola como lócus estratégico em possibilitar às garotas a experimentação de uma cultura corporal dos esportes.

A importância desse espaço na vivência do esporte, contudo, não oblitera a dificuldade encontrada pelas garotas para construir as possibilidades de ocupá-lo. A negociação referida anteriormente, longe de se dirigir somente ao outro, envolve, também, um processo consigo mesmas. Subjetivadas numa cultura que divide corpos em pares opostos e complementares e toma o gênero como derivação direta da diferença sexual, garotas envolvidas com a prática futebolística na Educação Física escolar, por vezes, reproduzem o estranhamento que lhes é dirigido por olhares alheios. Além do estranhamento por uma suposta incompatibilidade entre seu desejo pelo futebol e seu gênero, como me relatou uma atleta, emergem, ainda, relatos sobre a sensação de não pertencimento ou de insuficiência para a prática. Tal estranhamento, contudo, pode ser apreendido sob a ótica das possibilidades que anuncia. Ao estranharem-se com os territórios cristalizados e prescritos por normatividades de gênero, as garotas se encontram com a possibilidade de inventar outras realizações para si na maneira como vivenciam seus corpos, emoções e relações por meio dos movimentos e da prática esportiva.

Para tanto, professores de Educação Física, assim como profissionais de Psicologia da Educação ou do Esporte são agentes estratégicos no questionamento do que aparece como usual, corriqueiro e, no limite, natural nas relações esportivas escolares. Se a Educação Física e o esporte de modo geral são parte da maquinária que replica, reafirma e legitima normas de gênero, podem igualmente ser forjados como ferramentas para se lhes resistir, ampliando os modos de existência e as experimentações possíveis para os corpos. Sensibilizar a percepção para as situações mais triviais das aulas de Educação Física escolar, interpelando-as criticamente e recusando a tendência à naturalização de fenômenos sociais, eis a aposta que propomos na construção de práticas pedagógicas libertadoras no que tange às normatividades de gênero e seus desdobramentos violentos no contexto escolar. Aposta que, ao mirar o cotidiano, entende a necessidade de olhar para as micro-relações que sustentam práticas discriminatórias e desigualdades. Da mesma forma, ao mirar o cotidiano, tal aposta reconhece a parcialidade das intervenções e o alcance restrito do que se pode transformar. Em que pesem as limitações, não nos furtamos de perseguir o horizonte ético de construir uma sociedade, uma escola e um esporte mais diversos e plurais.

Sobre a autora
Doutora em Psicologia pela UNESP de Assis. Professora colaboradora do Departamento de Psicologia Social e Institucional da UEL.


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