A Comédia educa Atenas em Nuvens de Aristófanes

Ana Maria César Pompeu

A mímesis está na origem da educação. De acordo com Aristóteles, na Poética 1448b5-8: “O imitar é congênito no homem (e nisso difere dos outros viventes, pois, de todos, é ele o mais imitador, e, por imitação, aprende as primeiras noções), e os homens se comprazem no imitado.”.

Em Nuvens, comédia de Aristófanes de 423 a.C., Sócrates aparece como personagem e é ridicularizado como um fisiólogo e sofista, separado completamente da cidade, da arte musical e de eros (a mesma impressão pode ser lida em Górgias, 484d-e, na fala de Cálicles). Tal caricatura, segundo Platão, na Apologia, foi responsável pela má fama de Sócrates e pela acusação de Meleto, que reproduz o texto da peça cômica (19 a-d).  Os diálogos socráticos de Platão certamente primeiro respondem à crítica de Sócrates na comédia, onde primeiro ele foi representado como personagem. O Sócrates de Aristófanes é, geralmente, visto como o oposto do platônico. Há estudos recentes que, no entanto, fazem uma leitura diferente.

No prólogo de As Nuvens, o velho Estrepsíades, o ‘enrolão’, não consegue dormir, preocupado com as dívidas que contraiu e com a proximidade do dia da lua velha e nova, em que as dívidas deveriam ser pagas, ou senão, seus juros. Ele diz que o culpado de tais dívidas é o seu filho, Fidípides, nascido de seu casamento com uma dama da aristocracia. Enquanto Estrepsíades queria criar o filho sob a educação rústica que teve, a mãe fez do rapaz um Cavaleiro, um maníaco por cavalos. Até no nome do filho o pai teve que aceitar o sufixo hippos ‘cavalo’. Este filho, no entanto, dorme tranquilamente, sonhando com cavalos e carros de corrida. Estrepsíades diz que, após ter pensado a noite toda, encontrou uma excelente solução para se livrar das dívidas, sem ter que pagá-las. Acorda o filho e manda que ele vá estudar na Escola de Sócrates e Querefonte, o Pensatório, para livrá-los das dívidas contraídas por ele e sua mania de cavalos. (POMPEU, 2011)

No Pensatório, os hábitos dos que ali vivem são semelhantes aos ritos de iniciação e aos mistérios. Ali, o discípulo de Sócrates, que atende Estrepsíades, se refere aos ensinamentos socráticos como mistérios, que só os discípulos podiam aprender (v. 143). Estrepsíades passa por dois ritos de iniciação na escola de Sócrates: o primeiro marca a sua aceitação inicial no Pensatório, são ritos coribânticos (teloumenos 258); o segundo é comparado à entrada na oracular caverna de Trofônio. Depois de iniciado, o novo membro de tais cultos deveria seguir um estilo de vida ascético. E, em Nuvens, vemos que os habitantes do Pensatório não têm sapatos (103, 363), têm pouca comida (175-9, 186); (414-17, 437 ss. 723ss). O estilo de vida ascético desses homens também distancia o Sócrates aristofânico dos ricos e aristocráticos sofistas. O Pensatório está ligado ao céu e ao Hades: é a casa de almas sábias (v. 94) e homens semimortos (v. 504; cf. v.186); há a indicação do Tártaro (vv.188-194), mas há a ciência da astronomia (vv.172-3; 225 ss). Como o goes, um mago, pode invocar almas, Sócrates pode invocar as divinas Nuvens. Em 762-4, há uma paródia da viagem da alma: “Sóc. Então não enrole sempre o pensamento à sua volta. Solte a inteligência para o ar, como um besouro amarrado pelo pé.” Também em Platão, no Timeu, encontra-se a ideia da ligação da alma ao corpo por um tipo de cordão (73d, 85e). As deusas que dão nome à peça são exemplos do procedimento da comédia, que imita o que vê de forma a exagerar os defeitos. Elas agem assim com Sócrates e Estrepsíades, fazendo com que eles se percam em seus erros. Mas, no final, elas se mostram como instrumento da justiça de Zeus.

Na República de Platão, o conceito de mimesis está intimamente ligado à poesia, e é sobretudo por causa da imitação ruim do bem ou da imitação do mal, que a poesia é descartada da cidade ideal: no livro III, Sócrates instrui que se deve imitar o mínimo possível e somente os bons; no livro X, em um nível superior de educação, a poesia mimética deve ser descartada por estar por três graus afastada da realidade.

As Nuvens são tratadas por Sócrates como divindades, da mesma forma que os deuses olímpicos nos poemas épicos. Elas são designadas pelos mesmos epítetos e se assemelham às Musas, substituindo-as para os filósofos, sofistas e poetas líricos. São elas que proporcionam o pensamento: “Sócrates: São as Nuvens celestes, deusas grandiosas dos homens ociosos. São elas que nos proporcionam pensamento, argumentação e entendimento, narrativas mirabolantes e circunlóquios e a arte de impressionar e fascinar.”

Podemos associar, de algum modo, as Nuvens do Sócrates de Aristófanes com a teoria das ideias do Sócrates de Platão. Podemos também associar as deusas Nuvens aristofânicas, portadoras de pensamentos e argumentos, com as atuais nuvens portadoras de arquivos eletrônicos.

 

Sobre a autora
Doutora em Letras Clássicas pela Universidade de São Paulo (2004). Fez um estágio pós-doutoral na Universidade de Coimbra, em Portugal (2010). Atualmente, é Professora Titular da Universidade Federal do Ceará. Atua nos Programas de Pós-graduação em Letras (PPGLetras) e em Estudos da Tradução (POET). É líder do grupo de pesquisa/CNPQ/SBEC: Núcleo de Cultura Clássica. Foi Presidente da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos (2020-2021).

Para saber mais
ARISTÓFANES. As Nuvens. Tradução de Gilda Maria Reale Starzynski. In: Sócrates. Nova Cultural, 1987.

ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Eudoro de Souza. São Paulo: Ars Poetica, 1992.

POMPEU. Ana Maria César. Aristófanes e Platão: a justiça na polis. São Paulo: Biblioteca 24 Horas, 2011.


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