A oralidade africana e afrodiaspórica na Educação

Marcos Borges dos Santos Júnior

A constituição das práticas culturais e sociais de uma população tem como crivo as múltiplas formas de sociabilidade inerente ao “ser” em relação ao “mundo vivido”. Esta é a base da cosmopercepção (OYĚWÙMÍ, 2021), que estabelece uma noção indissociável do “ser” com “mundo vivido” para a abertura do sensível, no qual encontramos, por exemplo, no Ubuntu como forma existencial de “ser” em convívio com outras pessoas dentro da pulsão comunitária (NOGUERA, 2012). Nesta complexa forma de sociabilidade podemos apontar a oralidade africana e afrodiaspórica como “parte” constituinte da população negra brasileira na formação social (educacional/comunicacional) do “ser” negro.

Tal pulsão da oralidade negra, isto é, não uma habitual suspensão do espaço/tempo com tendências a satisfazer determinadas finalidades, mas um continuum vivencial (entendida como um arcabouço de experiências singulares e elementares) que entre passado e presente se constituem em uno, possibilita (re)descobrir toda uma estrutura de acontecimentos que potencializam as ações do dia a dia. Através desta epistemologia da oralidade negra, a tradição oral transparece como o fio condutor entre diferentes gerações.

[..] um dos objetivos da tradição oral provem na construção da identidade étnica do povo: cultura e história. Ao Invocar a memória, promove a manutenção dos valores tradicionais, no contexto africano e de sua diáspora tendo a funcionalidade de transmitir as próximas gerações o conhecimento de uma comunidade (SANTOS JUNIOR, CORREA, 2018, p. 4).

Pelo intermédio da tradição oral (e suas transformações), é possibilitado para a população negra uma continuidade de (re)significações das produções culturais e sociais destacando o elo de resistência da comunidade, por exemplo, no confronto com as mazelas provocadas pelo racismo da sociedade brasileira. Dentro do contexto brasileiro, o Rap vem sendo utilizado como pulsão da oralidade negra desde a segunda metade do Século XX, seja para apontar as desigualdades raciais ou transpassar as experiências do “mundo vivido”. Mediante ao livro “hip-hop, educação e poder: o rap como instrumento de educação” (2015) de Ivan dos Santos Messias, no qual propõe em analisar a gênese epistemológica do Rap e suas influências em diferentes grupos musicais do Brasil, é concebível constata que tal constituição só foi possível devido às contribuições da tradição oral africana pelo gênero vocal (tendo também influência da população africana que fazem a canção falada das contações de histórias, “Griots”)  dos jamaicanos Duke Reid, Coxsone Dodd e Kool Herk.

Um questionamento poderá emergir “é possível pensar na oralidade africana e afrodiaspórica a partir do contexto educacional?” de imediato devo salientar: qualquer forma de comunicação é um ato educacional, isto é, uma “condição de possibilidade de troca” (SODRÉ, 2014, p. 212) inerente a comunidade abrindo espaço para o sensível. Em outras palavras, o “ser”, na sua forma manifesta, mas também com pulsões entre ensinamento e aprendizagem (a manifestação se dá no entrelaçamento com o “mundo vivido”, no qual há complexidade tênue acerca das divisões do significante e do significado), já é uma continuum produção educacional, em que as experiências “vividas” acarretaram a organização e a expansão ao exterior.

Neste emaranhado das complexidades do “ser”, a oralidade africana e afrodiaspórica surge como potência e possibilidade na educação. Potência na criação do vínculo com o comum, mas também da comunidade. Possibilidade na conexão com os saberes ancestrais a fim de constituir uma identidade étnica.  Porém devo salientar que educação aqui é entendida como lugar do comum no “mundo vivido”, sem regulação das vigências institucionais que estipulam o dispositivo escolar como lócus tecnicista de ensino/aprendizagem. Outra pontuação necessária é afirmar que oralidade não se traduz no “sistema linguístico usual”, isto é, a fala, mas na corporeidade como expressão do “ser”, revelando não só a manifestação do “ser”, mas também o “mundo vivido” .

Para não me estender mais, pensar na oralidade africana e afrodiaspórica como potência criadora do “fazer humano” e possibilidade de produção do comum se torna necessário para subverter a lógica racista da contemporaneidade que tenta destituir o “ser” do “fazer” e introjetar/engendrar nas produções tecnologias como o campo do comum. Não é a tecnologia que dita as regras do “Mundo vivido”, mas nós, “seres” potentes e possíveis pela oralidade africana e afrodiaspórica!

 

Para saber mais
MESSIAS, Ivan dos Santos. Hip-hop, educação e poder: o rap como instrumento de educação. Salvador: EDUFBA, 2015.

NOGUERA, Renato. Ubuntu como modo de existir: elementos gerais para uma ética afroperspectiva. Revista da ABPN, v. 3, n. 6, nov. 2011 – fev. 2012, p. 147 – 150. Acesse aqui.

SANTOS JUNIOR, Marcos Borges dos; CORREA, Marco Aurelio da Conceição. A ancestralidade oral: epistemologias africanas para uma educação antirracista. Revista África e africanidades, v. Xi, p. 1-18, 2018. Acesse aqui.

OYĚWÙMÍ, Oyèrónkẹ́. A invenção das mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero. Tradução de Wanderson Flor do Nascimento. 1. Ed. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.


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