Sobrevivem os famintos

Ivane Laurete Perotti

De ideias nascem homens. Especialmente os engajados em atravessamentos. E calçadas: ilhas sociais rodeadas de indignidades por todos os lados. Foi assim que se foi Serafim. Serafino. Destituído de asas, ideias e incandescências. Invisível aos olhos. Aos fatos e apoios. Permaneceu por mais de hora enrolado em lona verde. Disparate alusivo. Corpo frio sobre a grama. Verde.  Esperando respeito. Da vida à morte.  Sem resistências. Sem velas. Sem choros. Despedida, não teve. Gracejava o último abrigo. Verde. Piada crua.

_ Mais um …limpeza na cidade. Era de se enterrar todos!

A mulher na poltrona ao lado do falante tinha olhos verdes. Verdes como o verbo pintado de verde. A luz atrás da íris esquerda dizia que esperançava. Ou esperava. Difícil decisão, porque escolha não tinha. Não tinham. Nem eles. Nem eu.

_ Morreu de tanta droga! Tudo uns vagab…
_ Seu parente?

Minha pergunta partiu da nuca, empurrada pelo coração do estômago.

_ Tá zoando, dona?
_ Curiosidade.
_ Parente meu não dorme na rua. Trabalha!
_ Bom para eles, não?
_ São gente direita…
_ Imagino!
_ Tá duvidando?
_ Não decidi!
_ A dona tá me zoando. Tá com pena? Leva procê!
_ A ideia é boa.

A dona dos olhos verdes cerrara as pálpebras. Oração ou distância. Tanto fazia. A lona permaneceria ainda mais tempo sobre a grama. Limpeza urbana.

_ Eu queria vê alguém levando esses …vadio, desocupado, malandros, vagab…
_ Tem banco!
_ Quê?
_ Na praça. Tem banco. Pode se sentar e aguardar.

Por alguns segundos, a voz tomou freio. Olhos revirados. Raiva. Ódio. Incompreensão. Desconhecimento.

_ Essa gente não qué trabalhá! Deviam matá tudo! – era a voz de outro inquilino do mundo. Fiz olhá-lo longamente. Longamente. Deixei rastro líquido entre as poltronas do ônibus. Procurei trevas. Encontrei vazios. Buracos mancos da irrefletida vida social. Pilastras de fel.

As duas vozes masculinas combinaram equívocos. Eu desceria em busca de antiácidos. Eles partiriam seguros de si. Fugitivos. Todos. Eles. Eu. Melhor apagar a trilha dos olhos. Ouvindo-os, voltei para o lugar das resistências. Internas. Construídas. Ideias e homens. Conceitos e valores. Direita e esquerda.

_ Deve tá do lado dos ladrão, né? E deve di sê professora! Tudo uma tropa que não qué trabalhá. Qué ficá reclamando… preguiçosos…querem tirá do povo…

O ônibus perdeu largura. Refrigerado, transpirou chispas. Faíscas. Preparei a expansão dos olhos. Recolhi. Expandi. E nesse vai e não vai, a consciência política fritou argumentos. Olhei. A máscara cobrindo a boca em ponto de plosão bilabial. Surda. Sonora. Dizer. Não dizer. Ducrot batia nos alvéolos. Pac! Pac! Poum-poum! Ainda não um “bang-bang”! Pam-pam! Tiros verbais. Estilhaços pregando o dito. Deles. Acidez na língua. Fogo amigo. Inimigo. O meu silêncio temperou cobras. Saltar do ônibus ou empurrá-los pela janela? Queria tanto que trocassem de lugar por uma tarde. Uma tarde em sala de aula abarrotada de crianças esperando o intervalo após dois anos longe da escola. E por pais exigindo a recuperação de conteúdo. Conteúdos. Descuido. Pressão. Des/in/formação. Que tal uma DR nacional? Alô, alô, marciano…Elis rompeu o lacre.

Dei com outro par de olhos. Escuro. Profundo. Parecia seguir o roteiro. Poltrona amarela. Melhor idade. Consciência histórica. Materialidade política. Acho que sorriu. Sorriram: olhos e alma. A boca, longe da vista. A tensão da cabeça parecendo dizer que conhecia os estragos. “Priscas eras”. Até Minh ‘alma ironizava o fado. Fardo! Levei o pensamento para o alto da Serra. Serra verde. Serra do Curral. Vaticínio drummondiano. Profecia de um poeta: “Olhai as montanhas! Olhai as montanhas, mineiros…”. Línguas de aço interromperam-me. Brocas cegas sangrando a terra.

_ O nosso mito…coitado! Foi, foi facada, sim!

Levantei a mim mesma com “Vontade e Representação”! Que Schopenhauer permitisse uma quebra de leitura:

_ Senhores! O mundo não é uma ilusão. Relaxem! Quem criou o homem jogou a chave na cadeia. Cuidado com os fundilhos das calças. Hasta lá vista!

Desci! Precisava rir. Sem freio. Rodeio. Ri muito. Loucamente. Sozinha na calçada esquerda da Praça da Liberdade. Ri da fala desconexa. Ri do tchau espanholado! Ri das bocas abertas que capturei durante os segundos das baboseiras proferidas. Os dois desinformados teriam muito para falar depois de meu pensado “ato de ridículo”. Sobrara-me a estratégia do absurdo. A quebra. O inesperado. E apenas mais uma bobagem em meio a tantas.

No meio-fio da calçada, depositei o peso do final da tarde. Rir, aliviara-me. As escolhas têm buracos de minhoca por onde o sistema imbrica a língua de trapo. Momentaneamente, fechara um. Ou abrira outros. A verdade, inexistente, enquadrava tão somente o meu prazer em sair de cena com duas bocas abertas, uma interjeição inaudível e a rápida sangria de sentidos.

_ Oi, profe! Você aqui? Está tudo bem?

Por milionésimos de segundos pinicou-me a sinceridade. Segundos. Em duas, o ridículo engorda. E aquela estudante investia. Muito! Preparava-se professora.  Operária da educação.

Da educação nascem gentes. Fazem-se homens. Ideias. Projetos. Libertam-se povos.  A escola respira movimentos.

Salvam-se os famintos! Salvemos os Serafins!


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