“Quem defende a criança queer?”: o uso da infância como estratégia de grupos conservadores

André Holanda de Melo Filho
Marcos Ribeiro Mesquita

A defesa da infância tem sido um dos motes mais presentes nos discursos de alguns grupos políticos e religiosos que se movimentam no sentido de estabelecer e manter relações que reforcem as ideias de gênero e sexualidade numa perspectiva cisheteronormativa. São discursos que estão diretamente ligados ao fortalecimento do conservadorismo que está em curso no Brasil e que associa o confronto de moralidades em relação ao gênero e à sexualidade e a mobilização da defesa das crianças e dos adolescentes como nos diz Vanessa Leite.

Não por acaso, esses grupos têm aparecido em diferentes espaços e de maneira contínua na sociedade brasileira como um contraponto reacionário aos movimentos sociais e setores da sociedade civil que, ao longo da história, tem conquistado direitos e disputado narrativas de redistribuição e reconhecimento, inclusive nas áreas da infância e da adolescência. Estiveram presentes, por exemplo, nos casos de implementação da política Escola Sem Homofobia, em 2011; nas discussões sobre a retirada dos termos gênero e sexualidade dos Planos de Educação nos seus diferentes níveis (nacional, estadual e municipal), em 2014; bem como, nas movimentações de perseguição e censura no país. Em 2017, o Queermuseu e o Museu de Arte de São Paulo (MASP) foram acusados pelo Movimento Brasil Livre (MBL), de organizarem exposições que faziam “apologia à pedofilia” e “erotização infantil” como informa Fernando Balieiro. Esses espaços acolheram exposições e performances artísticas que discutiam as diferentes expressões de uma infância queer.

Os discursos em defesa dessa infância passaram a se constituir também como uma política de Estado. Especialmente através do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, quando no pronunciamento de posse da ministra, informa o mote que orientará suas políticas públicas: “O Estado é laico, mas eu sou terrivelmente cristã (…) Este é o Ministério da família, da criança e do adolescente. Nossas meninas e meninos estão entre os bens mais preciosos da nação e neste governo, menina será princesa e menino será príncipe, tá dado o recado”.

A concepção de infância construída por esses grupos, no entanto, é ficcional. Paul Preciado, em sua obra Quem defende a criança queer?, sinaliza esse fato. A preocupação desses setores é centrada não na proteção da infância em si, mas na sua utilização para incitar pânico moral em momentos nos quais coletivos LGBTQIA+ conquistam direitos e destaque nos debates públicos. Além disso, centra-se na defesa de uma perspectiva biologicista e moralista, marcada por uma naturalização da ideia de infância associada a uma perspectiva cisheteronormativa.

Nas imagens mais populares das perseguições contra intelectuais que se destacam na proposição desse debate, podemos verificar cartazes que bradam “mais príncipes, mais princesas, menos bruxas”, nas manifestações a Judith Butler, quando de sua passagem pelo Brasil, por exemplo. Ela não foi a única a ser perseguida por esses grupos. A antropóloga, pesquisadora e ativista brasileira Debora Diniz também foi vítima de ataques sucessivos e, por sua segurança, foi orientada a sair do país. Na entrevistaTodas as mulheres fazem aborto, mas só em algumas a polícia bota a mão, a pesquisadora relata que perseguições e censuras contra ela aumentam em períodos em que ela defende publicamente os direitos sexuais e reprodutivos de pessoas com útero. De novo Fernando Balieiro nos atenta que a estratégia presente nesses discursos visa construir a imagem de acadêmicas/os e ativistas de gênero como ameaças às infâncias, e assim deslegitimar conquistas anteriores e futuras em campos como o dos direitos sexuais e de gênero.

O que podemos questionar é o fato de que esses mesmos grupos que “defendem” a infância também advogam a redução da maioridade penal, criminalizando a adolescência. Não se comovem com a morte de crianças negras, periféricas assassinadas pela PM em razão da criminalização da pobreza – como no caso da menina Ágatha de 8 anos –, ou ainda defendem uma narrativa pró-vida mesmo em situações em que essas mesmas crianças tenham sido vítimas de estupro. Tampouco, se comovem com a notícia do assassinato brutal de uma adolescente trans de 13 anos.

Assim, partindo do lugar que nos situamos – especialmente da educação – firmamos um compromisso democrático em defesa de todas as infâncias, entre elas, aquelas atravessadas pelas experiências que rompem com as lógicas cisheteronormativas. Um compromisso também com o enfrentamento aos discursos que delas se utilizam para promoverem agendas conservadoras que afirmam algumas, mas não todas as infâncias.]

 

Sobre os autores
Psicólogo graduado no curso de Psicologia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e integrante do Núcleo de Estudos em Diversidades e Política (EDIS).

Professor dos cursos de graduação e pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL).


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