Letras e números, anotações para uma arqueologia da língua

Wojciech Andrzej Kulesza

A língua, o idioma, é uma coisa viva, no sentido de que vai se transformando com o tempo. Em nossa linguagem estamos constantemente criando palavras e algumas até acabam por se incorporar à norma culta, aparecendo nos dicionários. Povos vivendo muito tempo isolados criam dialetos compreensíveis só por eles e que podem dar origem a uma nova língua, situação que já ocorreu muitas vezes no curso da história. Assim, como os seres vivos, as línguas nascem e morrem, florescem e se extinguem.

Nesse processo de reprodução e transformação, muitas formas de expressão permanecem as mesmas durante milhares de anos fazendo com que a gente esqueça os contextos originais em que elas foram enunciadas. Entretanto, essas expressões idiomáticas se referem ao que acontecia naqueles contextos, são testemunhos de uma determinada situação e, inclusive, se aplicavam a situações semelhantes. Não sei como surgiu a palavra amém, mas a uso quando concordo que assim seja.

Agora, se eu estou interessado no contexto, então a etimologia das palavras pode me ajudar. Suponhamos que eu esteja interessado em como foram definidos os quatro pontos cardeais, Norte, Sul, Leste e Oeste. Será fácil verificar etimologicamente que Leste e Oeste, ou oriente ou ocidente, se referem ao nascer e ao pôr do Sol. Quer dizer, o contexto pode ser definido por uma Terra imóvel com o Sol girando em sua volta, fazendo com que todo dia, ele surgisse no horizonte para “se deitar”, ou “se esconder” no lado oposto.

Desse modo, fica faltando definir apenas duas direções perpendiculares à linha Leste/Oeste. Como entra aí o contexto? Em primeiro lugar temos que levar em conta que foi no hemisfério norte que se desenvolveu a maioria das nossas línguas, justamente chamadas indo-europeias. Se buscarmos pela etimologia das palavras Norte e Sul, vamos ver que elas estão relacionadas com o que acontece ao meio-dia ou meia-noite, assim, por exemplo, meridional, outra denominação do sul, vem de meio dia.

Então, à meia-noite na Europa, embaixo de mim, do outro lado da Terra, é meio-dia, o Sol está brilhando, então o Sul é para lá e acima da minha cabeça fica o Norte facilmente reconhecível no hemisfério norte pela estrela polar. Essa estrela Polaris, que fica quase exatamente na direção Norte à meia-noite, faz parte da constelação da Ursa Menor, constituída por sete estrelas, daí a denominação de setentrional para designar essa direção, o que corrobora nossa interpretação, válida para qualquer lugar na Terra.

Basta então girarmos de 90º no sentido horário esse eixo vertical, para que se localize no plano da Terra onde estou para recuperar o célebre artifício ensinado nas escolas: para encontrar os pontos cardeais, ficar em pé, com os braços estendidos, de frente para onde o sol nasce (esta é a direção Leste e atrás de mim está a direção Oeste) e a mão esquerda estará apontando para o Norte, enquanto a mão direita indica a direção Sul. Não precisava ser assim. Tudo isso não passa de convenção. Podia ser o contrário.

Hoje sabemos que o contexto mudou, é a Terra que gira em torno do seu próprio eixo. Todavia, nada muda porque isso simplesmente é uma questão de referencial: eu posso descrever esse movimento de um modo ou de outro, tanto faz (isso não é verdade para o movimento de translação da Terra, determinado pela atração gravitacional do Sol). Por isso continuamos a saudar todas as manhãs o nascer do Sol e assistimos todas as tardes o seu ocaso, outra palavra cuja etimologia também deriva de cair, perecer.

Com o desenvolvimento da escrita, as locuções passaram a ser registradas, e são fontes importantes de informação sobre a vida em tempos passados. Não é à toa que os primeiros historiadores diziam que a história de um povo começa quando se codifica sua língua. A escrita constitui até hoje a fonte padrão, documental, da narrativa histórica. Como um microscópico organismo incrustado numa fenda de uma rocha coberta com uma camada de gelo, a linguagem escrita também tem nela cristalizado indícios do passado.

Sabemos que o sistema alfabético que nós usamos foi inventado antes do nosso atual sistema de numeração, mas sempre houve influência de um sistema sobre o outro. Assim, por exemplo, os escribas gregos fizeram com que as 9 primeiras letras do seu alfabeto correspondessem aos primeiros 9 números, as outras 9 às dezenas e as 9 restantes representavam as centenas. Isto deve ter ajudado a dar uma certa “ordem” ao alfabeto que ainda estava se organizando, enquanto qualquer sistema numérico já é intrinsecamente ordenado.

Todavia, quem lidava na prática com números, como os comerciantes, preferiam usar um sistema parecido com o romano, no qual se atribuía símbolos aos números 1, 5, 10, 100 e 1000, escrevendo qualquer número como uma combinação desses símbolos.  E, para facilitar, esses símbolos geralmente eram as primeiras letras das palavras que nomeavam esses números em grego. Temos vestígios dessa prática em nomes de nossa língua nas palavras década, decassílabo, pentacampeão, hectolitro etc.

O interessante é que a palavra contar significa tanto contar alguma quantidade, como contar uma história. De fato, era comum o registro numérico das quantidades tanto no comércio, como na arrecadação dos impostos pelo governo. Tudo isso ficava registrado, arquivado e não admira, portanto, que contar significasse também falar a respeito dessas quantidades compondo uma narrativa. De certa maneira, a ordem imanente ao conjunto numérico se imiscuía no discurso, ajudando-o a estruturá-lo: em primeiro lugar, vou te contar…


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