Genocídio indígena, a missão – 2

Raquel Melilo
Renata Fernandes

Há um tempo, em outra coluna para a qual contribuo, escrevi sobre as representações simbólicas e estereotipadas do índio brasileiro. Da minha infância, resgatei a memória do uso de penas fakes na cabeça e tinta guache na cara para celebrar o Dia do Índio. O índio retinto, sem pena, não me foi apresentado nos meus primeiros anos de escolarização. Na adolescência, José de Alencar me apresentou Peri. O índio puro e ingênuo. Inocente demais para causar mal. Selvagem o suficiente para demandar o esforço civilizador. 

E eis que aqui estou. Adulta. Numa distopia de Brasil que fez emergir atores políticos que mesclam visões estereotipadas do senso comum com as da literatura elitista e branca. Resgatar preconceitos deveria ser um movimento desencorajado por uma Constituição que avançou no que se trata do direito aos povos originários. Infelizmente, vários representantes do governo federal reuniram coragem o suficiente para rasgar vários pontos dessa mesma Constituição. Uma coragem covarde, eu diria. Porque desferir blasfêmias sobre os indígenas brasileiros e legislar sobre retirada de direitos é relativamente simples. Falta a coragem original dos primeiros colonizadores: provocar o genocídio e aculturação dos povos indígenas de maneira explícita. 

Hoje, o genocídio e aculturação acontecem, por vezes, de maneira disfarçada. Com um pouco de empatia e inteligência, no entanto, é possível identificar o fenômeno em curso.  O principal problema é: nem todos os brasileiros parecem ter empatia e/ou inteligência (aqui eu acrescento pensamento crítico). Outra coisa: alguns disfarces aparecem como atos de bondade. São poderes que se manifestam em microesferas por meio de dispositivos finos de controle (aprendi com Michel Foucault em “Vigiar e Punir”).  

O avanço do garimpo ilegal não é, obviamente, um ato de bondade. Este avanço faz parte de um pacote de maldades do governo federal e é questionado até por grandes empresas mineradoras. A “bondade” à qual me refiro é o avanço de missões evangélicas. Sob o incentivo de alguns ministérios e ignorado pela FUNAI (Fundação Nacional do Índio), a catequização atual adquire outras feições. Diferente da catequização católica do período colonial, hoje a situação socioeconômica de diversos indígenas é um ponto a ser considerado no processo missionário. Várias comunidades indígenas estão no contexto urbano e, dado todo o conjunto de violências históricas, estão em situação de vulnerabilidade. Nessas comunidades, a fé vem com presentes. Demandas materiais e objetivas são atendidas. E vem também com promessas: a extinção de culpas e a prosperidade econômica.  

Para que as promessas se realizem é necessário que se faça o apagamento de todo sistema de crenças dos povos originários. Novos pecados são inventados. E novas culpas criadas. Num sistema circular de exploração e apagamento cultural. Simbólico. Mas percebido e, felizmente, questionado. Cabe-nos, portanto, vigiar e resistir.


Imagem de destaque: Galeria de Imagens

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