Narrativas de um compasso – real

Ivane Laurete Perotti

— Hoji é as coisa da minha história, psô!?

— Das nossas, não é?

— A minha história é … cabrera, tendi? Num sei si posso contá, assim… em público.

— Tamém não posso! Coisa das quebrada a genti não arreparte, tá ligadu?

— Eu não arreparto nem cumigo… podi crê!

— Queria esquecê a minha…

Memórias suam. Brotam. Pedem colo. Audição. Criam rizomas. Caules. Internos. Abcessos da negação. Memórias são cápsulas da história.  Rasgam tempos. Pedaços. Inteiras. Vão e voltam. Breves. Rotineiras. Modelam gestos. Comem razão. Retornam sempre. Vão na frente. Cartão de visita. Escorregam dores. Túmulo aberto. Terra de ninguém. Memória é coisa séria. Tem riqueza. Tem miséria. É sempre de alguém.

— Nossas histórias são importantes. Todas elas. Estão diretamente ligadas a quem somos. Como somos. E não estão apenas no passado. São hoje.

— Ah! Nem, prof! Eu mi alembro sem querê alembrá!

— Sim, são as memórias que nos são caras…

— São cara, não! Num vali centavo furado. 

— Eu vendo as minha. Podi levá!

— Leva as minha. São de grátis!

— Grátis, não é?

— De grátis, mermo. Leva tudo!

— A nossa história é o maior legado que possuímos!

— Cruizincredu! Di boa, profi! Tá enganadu aí! Eu quero isquecê…tudu!

— Esquecer não apaga a história. 

— Intão, nascê di novo, uai!

Riam enquanto a alma mitigava, inconclusa, um bilhete de acesso. Eram estudantes embaralhando comentários. Complexos. Os comentários e o grupo. Idades díspares. Contextos distanciados pelas urgências criadas. O professor abrira o jogo. Cartas à mesa. Interessados. Passes rápidos. Cartadas decisivas. Um tal de dizer sem dizer que mais lembrava o pôquer do que exatamente uma abertura de vozes.

— Essa das voiz aí eu não tendi, não!

— Hummm… é… eu fiz uma figura de linguagem…é …

— Tá perdidão, né, profi! Vai aí, tamo chegano… podi crê!

— Certo! Então, quem gostaria de começar contando uma história, um fato, um…

— Dos ôtro?

— Melhor que seja a sua história, não acha?

— Acho não… procedi?

— Acredito que tenham as suas razões, mas somos todos adultos, e essa turma…

— Adultros? Di rocha, profi! Nóis só têm idadi! O resto, na caída, meu!

— Podemos escrever. Cada um escreve o que deseja contar e ….

Novas gargalhadas tomaram a sala quase cheia. Debochadas e reclamantes. Rasgadas. Suplicantes. Olhares que escondiam. Escondiam-se. O humor como armadura. O riso como denúncia. Dizeres da incompletude. Linhas soltas. Histórias da exclusão. Ou trabalha, ou estuda. Ou come, ou morre. Morre. Por fome. Por bala. Por qualquer decisão. Longe da escola. Fora do tempo. O corpo escorrega. A vida cobra. A fome marca. Estampa o rosto. O posto. Tira lugar. 

— Ô, profi, cum todo u respeitu, mas nóis não iscreve, né?  Só no dedão?

— Sim. Estou ciente. Vocês estão aqui para recuperar um tempo que ficou…

— Ficô, não! A genti num tevi tempo não, profi! A genti foi pros bagulho, tendi?

— Somo tudo empreendedor… de…de….pegô, né?

— Nem todos, mano!

— Podi crê!

As gargalhadas atravessaram a sala como brilho de estrela. Velozes. Fugazes. Um risco na berlinda da mesa. O jogo enunciatório migrando de mão em mão. Subjetividades negociando o verbo. A troca. Exposição de sujeitos mantidos à margem do rio. Seco rio. Várzea dura. Invisibilizada por amplos projetos de segregação. Homens e mulheres brutalizados pela existência sem rede. Escola. Educação. 

— Ô, psô! A genti podia contá di agora im dianti!

— Qualé, mano! A prosa não cabi, não tem destinu, meu! Nós vai contá du destinu?  Vai abri as cinco chave?

O silêncio traçou sentidos. A linguagem muito própria ao grupo provocava ruídos. Mas o professor não desistiria. Aquela conversa, entre pedras e espinhos, seria um começo. Um refúgio entre os abismos sociais. Compreendia as dificuldades. Sentia na pele o embaraço e os tropeços. Acreditava naqueles homens e mulheres que tardiamente chegavam à escola. Chegavam por conta própria. Buscavam mais do que aprender ferramentas. Queriam um lugar. De direito. De fato. História. Memória. Identidade. 

— Tá valeno? Ele deu cinco! Eu peguei doze ano, maninho! Tá ligado?

— É um bom começo. Gosto da ideia. Podemos falar sobre o motivo que os traz à escola. 

— Ordi di cima!

— Eu quero sabê das coisa di escrevê. Tô cansado das parada!

— Quero iscrevê e somá, prof!

— Não qué diminuí, não, ô mané? Se somá todo os ano, você ganha!  

O riso foi perdendo espaço. Olhos envergonhados gritavam “truco”! Nenhum vencedor. Sem prêmios. Sem resgate. A escola por penitência. A escola por esperança. 

— Tá ligado, né pró! Nóis aqui demo muito perdido na vida.

— Eu penso que todos nós, e me incluo nesse grupo, todos nós, temos “perdidos” para contar. A gente aprende com os erros e, se estão aqui, vocês já descobriram que podem mudar a história.

— É por aí! Tô cansado di sê meno zero!

— Tá suavi! Disse tudo!

— Nóis é as pessoa que não adeveria di tê nascido.

— Não é por aí. Precisamos valorizar cada momento de nossa existência. Cada passo é importante para fazermos as mudanças que desejamos.

— Já ti dissi, profi! Só nasceno di novo.

— Então, se você pudesse nascer de novo, onde nasceria?

Vozes em coro. Abertas. Vivas. Nova jogada. Estações surgindo. Letras. Leituras. Literatura. Cálculos com sobra. Dobra. Conexão. Conhecimentos de mundo. Crenças. Narrativas de fatos. História. Escola para Jovens e Adultos: “o educador já não é o que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando que, ao ser educado, também educa.” (FREIRE, 1987, p. 39). 

 

Para saber mais
FREIRE, Paulo; SHOR, Ira. Medo e Ousadia: O cotidiano do professor. RJ: Paz e Terra, 1987.


Imagem de destaque: Tumisu

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