Nas teias do homeschooling

Rafael Cavalheiro

Temos visto com certa insistência a proliferação de falas, debates e reportagens que trazem à baila a discussão sobre a educação domiciliar, popularmente conhecida como homeschooling. A problemática sobre essa modalidade de ensino ganhou força no atual governo devido à sua centralidade: não à toa foi colocada como uma das metas principais dos 100 primeiros dias do governo de Jair Bolsonaro. O projeto de lei (PL 3261/2015) apresentado em 2015 pelo filho do presidente, Eduardo Bolsonaro, visava a autorizar o ensino domiciliar e encontrou obstáculos na Câmara, que culminaram no seu arquivamento anos mais tarde. Porém, estrategicamente, a discussão voltou a ganhar força após a eleição de Jair Bolsonaro.

Para além dos trâmites internos que regem a proposta e de seus aspectos jurídicos, gostaria de destacar aqui algumas lógicas que subjazem os pontos levantados por certos discursos políticos que endossam a regulamentação dessa forma de ensino, bem como algumas posições defendidas pela ANED (Associação Nacional de Educação Domiciliar). É importante salientar que muitos posicionamentos, sobretudo aqueles vinculados aos PL, atacam o ensino escolar.

Nesses ataques estão contidos argumentos que posicionam a escola como um lugar puramente conteudista e engessado, como se o espaço escolar restringisse as potencialidades individuais dos estudantes, que encontrariam na educação domiciliar o vetor privilegiado para tal desenvolvimento. Como se a escola promovesse uma pasteurização do pensamento e o homeschooling fomentasse o pensamento crítico. Tais argumentos aparecem, inclusive, na página da ANED que diz: “na educação domiciliar, ao invés de apenas memorizar conteúdos, a criança é conduzida à interpretação de textos, ao raciocínio lógico e à solução de problemas, desenvolvendo o questionamento e o senso crítico da realidade à sua volta”.

Sem oferecer argumentos substanciais que corroborem suas posições, a associação comenta que “estudos comprovam” que os alunos de homeschooling são mais tolerantes à diversidade religiosa e política: ponto que parece um tanto contraditório com o que temos acesso em território brasileiro. Um exemplo pode ser encontrado na reportagem do Programa Profissão Repórter do dia 06.07.2021. A matéria acompanhou dois parlamentares com posicionamentos distintos em relação ao projeto do homeschooling (Professor Israel, Luíza Canziani). Ainda, tivemos acesso aos bastidores da articulação política, às falas de alguns ministros e a como o ensino domiciliar era praticado pelas famílias que aceitaram participar do programa. Dessa reportagem, ressalto a importância atribuída à religião, muito presente no ensino de uma das famílias, e duas falas de atores políticos. A primeira fala é de Ricardo Barros, líder do governo na Câmara, que diz que o homeschooling é parte das pautas de costume do governo e que está relacionada ao pensamento conservador do atual presidente. A segunda é da Ministra da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos, Damares Alves, que afirma: “[…] essa pauta que nasce nesse ministério, […] é a autonomia da família em escolher a modalidade de ensino pro seu filho”.

Sobre a questão da religião, vale ressaltar que o ensino público brasileiro é orientado pela laicidade e segue as diretrizes estabelecidas pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC). A vinculação da criança à crença dos pais vai de encontro a BNCC, além de tomar a criança como objeto e não de sujeito. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) parte do princípio de que a criança é um sujeito de direito e não um objeto de propriedade dos pais. Não apenas na questão religiosa, mas mesmo nos conteúdos programáticos dirigidos a cada um dos anos, ainda restam muitas questões de como a decisão dos pais ou dos tutores podem interferir no aprendizado, visto que há uma inflação da capacidade de agência desses cuidadores e uma deflação da agência dos menores. Ademais, essa lógica remete ao autoritarismo e a constituição de novembro de 1937, que em seu artigo 125, promulgava: “a educação integral da prole é o primeiro dever e direito natural dos pais”.  

A fala de Damares é também uma síntese de outras políticas de governo neoliberais que se chocam com a questão do ensino domiciliar. Isso está ligado à noção de privatização do espaço público que figura como insuficiente, deficitário e perigoso, por estar inflado de ideologias. Podemos lembrar do fantasma e do truque discursivo contido na noção de “ideologia de gênero”. Seguindo, Wendy Brown destaca que há uma “expansão da esfera privada protegida, que corresponde à ampliação do papel da família”. 

Entre enredamentos e cortinas de fumaças, temos o homeschooling, que parece ser uma teia discursiva, uma que reinsere um ideal de família específico nesse debate: a família preconizada por um ministério que fomenta pesquisas no singular. Um projeto arquitetado e desenvolvido por deputados que se alinham a discursos anti-ciência e terraplanistas que inflam um imaginário em que o ensino escolar está minado por pautas-bomba como igualdade, diversidade e inclusão. Não é sem efeito que muitos discursos em defesa do homeschooling sustentam que os valores familiares devem pautar o ensino, de modo que esse ensino apenas reflita aquilo que os pais pensam. Em um momento de erosão democrática e de múltiplos ataques às discussões sobre gênero e sexualidade no campo da educação, vide toda a mobilização discursiva em torno do “kit gay”, podemos imaginar os efeitos desastrosos que podem decorrer dessa modalidade de ensino quando pautada por uma lógica familista, religiosa e anti-gênero.     

 

1 – Rafael Cavalheiro (Doutorando em Psicologia Social pela UERJ. Psicanalista. Mestre em Psicanálise: Clínica e Cultura pela UFRGS). E-mail: rafaelatler@gmail.com

 

Para saber mais:
BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019

Aned. Acesse aqui


Imagem de destaque: AugusteBlanqui

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