Vira, Ira! Ara! Ira! Vira Iara…

Ivane Perotti

O sol não abrira os olhos.  Por entre os montes, o pescador repetia o ritual. Quanto antes chegasse à nascente, maiores as possibilidades de armação das redes e levante do anzol. Gostava de acordar cedo. Era uma espécie de oração que fazia ao despertar antes dos outros. Enchia o peito de esperança e imaginava que aquilo ali era passageiro. Penúria rodeava a vida que levavam. A terra sumira das mãos calosas e sobrara o rio.  O velho barrento rasgava o próprio ventre para alimentar os homens sem chão. Virgi! Não queria arreclamá, mas… tava munto difícir.  Na maioria das vezes, pensava nos anos passados em melhor situação. Sonhava com a pequena roça verde de folhas e raízes, cheirando a brotos novos. Lugar que fora dos pais dos pais de muitos iguais a ele. Tomaram as terras, levaram a vida embora. Quem ficou, minguava às margens do velho rio. Enquanto os pés descalços amassavam a relva molhada, Tião sentia a cabeça girar pela escassez da comida e pelos tragos emborcados durante a noite anterior. Fora levado pela roda de pinga. Pinga braba: arrevortava o istômigo! E agora, que se avexasse di veiz! Ia pescá nem que fossi a tar de… a tarde de… dona Iara! Aff! Tava se muqunfandu di novu! A tar da dona, siiexistisse, tinha ido s’imbora tamém! Virgi! Quanta bobagi na cabeça dum homi maldormido!

Tião correu os olhos pela água ainda adormecida. Lavou o rosto e respirou o ar da manhã mergulhando nos pensamentos que assustavam feito correnteza em dia de enxurrada. Abaixado, abriu a rede cheia de buracos. Rede velha, tão velha que não sabia dizer quanto. Haveria de pescar qualquer… ói! que sombração zombava du disisperu dele? Quem adeveria cantá música tão… tão…tão cheia de belezura? Os olhos do pescador tomaram-se de mágica alegria. À cabeceira do rio viu a mulher mais linda que um homem poderia ver com as vistas do corpo. Viu e ouviu. Das mãos dela brotava água limpa e perfumada, e os cabelos, ah!, os cabelos eram tão sedosos e iluminados que o sol se encabularia ao vê-los assim. Era uma… uma… mara… mara…maravia! Ô dona di tanta formosura! Não adeveria sê das arredondeza… e ainda cantava inguar um anjo! 

Deixou cair a rede. Por um tempo sem demora esqueceu quem era e o que fora fazer ali. Via sem perguntas no coração cansado. A voz cantante embriagava a alma e o corpo magro. Sorria com a boca inteira. Aberta, feito taramela quebrada. Os olhos pregados na moça, na dona, na… maravia! Ô dia bão, sô! Bão adimais da conta… e chegava mais perto do espetáculo que acontecia para ele, só para ele. Tão perto, mas tão perto, que até poderia jurar que sentia cheiro de laranja madura. Gostava de flores. Gostava de música. Gostava de… vira! Vira, ara! Ira! Mas que… mara… via! Tonto pela visão e pela música, Tião entrou no velho rio. Entrou, entrou e entrou. A água barrenta lhe tomava o corpo como se ao rio pertencesse. A correnteza não era forte, mas na profundidade do rio, muitos homens haviam perdido a vida. Não era brincadeira! O rio levava quem o desafiasse. Tião sequer lembrava que sabia nadar desde menino. E nadava bem. Mas não ali, naquele momento, com aquela voz entontecendo os sentidos e o corpo desnutrido. Foi e foi. Foi descendo para o fundo mais fundo do fundo. À frente, a dona da voz e dos cabelos iluminados o chamava para mais perto. Ele foi. Deixando afundar com ele as dores da luta. A aridez da vida. As promessas que ouvira de quem levara a terra e a vida. A voz entrava no peito. Subia e descia da cabeça cansada. Brilhava nos olhos vidrados de repentina e gratuita felicidade. Ali, imerso na massa líquida do antigo rio, sentia voltar ao berço. Ao útero da terra. Das sementes fincadas na cava rasa. Via o milharal tremeluzir com o vento do anoitecer. Voltava a ouvir o som dos bugios procurando família. Lembrava da sua. Espalhada. Sem esperança da volta à terra de meudeus! Via, vira! Iara via! Via Iara!

Outros pescadores chegaram, bem mais tarde, naquele dia. Uma tal viração pegara a todos desprevenidos. O ar da manhã, leve demais, beliscava a cacunda. Arrependidos da noitada que atrasara a pesca, procuravam desculpa para o estranhamento. Cedo demais para boitatá. Pouco vento para o Curupira. Ara! Dia abestado dimais da conta! Encontraram a rede de Tião. Armada e cheia de peixes. Menos Tião.  Ninguém até hoje sabe explicar onde foi parar o velho pescador no amanhecer de uma longa e afortunada pescaria. Ara!


Imagem de destaque: erin leigh mcconnell

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