O direito à vida em tempos remotos

Amauri Carlos Ferreira1

Luzia Maria de Jesus Werneck2

Sobre o retorno às aulas presenciais, somos convocados a pensar em nós mesmos, no outro e sobre a nossa presença no mundo. Tal reflexão conduz ao campo da ação do sujeito a partir de princípios e não a partir de regras. Na primeira ação, o sujeito tem em seu horizonte a liberdade inscrita em sua conquista, que pressupõe de imediato a autonomia do pensar. Na segunda, o sujeito tem em seu horizonte a servidão inscrita na obediência, que pressupõe de imediato a heteronomia de servir. Tanto uma ação quanto a outra são legítimas e movimentam o mundo.

Pensar a partir de princípios é sempre um desafio. A ação ética convoca-nos a tomar uma posição quando o outro nos interpela, nos indaga, nos convoca. Um outro independente de sua cor, escolhas políticas, pessoais, sociais e sexuais. Um outro que tem direito a pertencer e a viver nesse mundo que escolhemos defender, quando o reino da liberdade é ameaçado. 

Defender o ser humano em sua dignidade foi e é uma conquista da modernidade. Agora é a vez de aprendermos com os dilemas das experiências em relação à liberdade de se fazer pertencer ao mundo. É no lastro de uma herança dos direitos humanos que a liberdade, alicerçada com outros princípios, lega-nos a dignidade humana. E, sobre esse princípio de se tornar livre no campo do processo educativo, há a necessidade de afirmá-lo para não relegá-lo ao esquecimento. A liberdade é um legado dos direitos humanos e está reservado ao sujeito em sua autonomia. 

Na história dos direitos humanos, o direito à vida é uma conquista. É preciso preservá-lo, o que nos remete à seguinte pergunta: Por que há a necessidade de se declarar um direito humano?  

Marilena Chauí responde de forma contundente. 

O ato de declarar direitos significa, em primeiro lugar, que não é óbvio para todos os humanos o fato de serem portadores de direitos e, em segundo, que não é um fato óbvio que tais direitos devam ser reconhecidos por todos, uma vez que a existência da divisão social das classes permite supor que alguns possuem direitos e outros não. (CHAUÍ, 2019, p. 47).

As pessoas que são educadas para o outro nessa dimensão humanitária sabem que suas ações são marcadas por princípios religiosos, do campo da conquista humana ou na interação entre ambos. Nada as impede de agir por regras políticas que envolvem as ideologias que excluem, dilaceram, impossibilitam que o outro seja ele.

Nos sistemas político/econômico que regem as sociedades, nem sempre o outro é respeitado em seu pertencimento ao mundo. No sistema capitalista, o outro não está em cena. E na reflexão vinda da lógica do capital, deve-se retornar às aulas de forma imediata. Não importa as vidas perdidas, pois são repostas no cargo ocupado pelo trabalho imposto em seu processo cruel de segregação social. 

A humanidade já passou por outras epidemias. Aqueles que sobreviveram narram suas experiências e proporcionam aprendizados. Harari (2020, p. 13) afirma que “o verdadeiro antídoto para epidemias não é a segregação, mas a cooperação”. Ele chama a atenção que, para entender sobre a atividade dos vírus e combatê-lo, nada melhor que a informação. Acrescentamos a necessidade de uma boa formação advinda da educação.

O retorno às aulas presenciais tem sido propagado como um direito à educação, o que é legítimo. A argumentação é de que existe uma perda irreparável no processo da socialização e do desenvolvimento cognitivo. Nós, professores, concordamos. Mas o modo instituído com que esse retorno tem sido proposto à comunidade escolar não considera o direito que o sobrepõe: o direito à vida, na esteira dos direitos de primeira geração. 

Já aceitamos esse direito à vida reservado a uma conquista. A exigência do retorno imediato às aulas, condenando a comunidade escolar à configuração da própria sorte, deve por princípio ser negada. Em tempos de pandemia, a situação real é que a vida não está sendo garantida e está configurada como um processo de não imunização da comunidade escolar. Tem-se deixado para o ethos legal o que é da esfera do ethos ético. 

Não há consultas aos profissionais das áreas da educação e da saúde. Tudo é decidido como se os sujeitos da comunidade escolar fossem objetos substituíveis. Quando são escutados e indagados sobre o retorno das aulas presenciais, eles se posicionam contrários, demarcando o princípio essencial de defesa da vida com argumentos que trazem em cena o outro.

A informação e a formação sobre os vírus, as pandemias, o processo educativo, eles sabem. Acreditam na ciência. Eles não são contrários ao retorno às aulas, mas, nessas condições, consideram um risco. Os mais politizados denunciam a lógica da dominação, a perda de direitos, o silêncio da família frente à vida.

Nesses tempos sombrios, uma boa parcela desses professores educam a partir de princípios, mas a espada de Dâmocles está colocada sobre suas cabeças. 

 

1Professor da PUC Minas e do Instituto Santo Tomás de Aquino (ISTA).

2Professora da PUC Minas. 

 

Para saber mais:
CHAUI, Marilena. Utopia, revolução, distopia e democracia. In:  Mutações – A outra Margem da Política. Org. Adaulto Novaes. São Paulo: Edições SESC, 2019.

HARARI, Yuval Noah. Notas Sobre a Pandemia – Breves Lições para o Mundo pós-coronavírus (artigos e entrevistas). São Paulo, Cia das Letras, 2020. 


Imagem de destaque: CPERS

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