“Omitireis a verdade, e isso nos libertará”

Raquel Melilo 

Renata Fernandes

Nosso presidente Messias, se fosse também considerado profético, poderia ter adaptado o trecho bíblico que tanto gosta de citar. Na sua campanha eleitoral, em vez de usar tanto “conhecereis a verdade…”, ele poderia usar “omitirei a verdade”. Bolsonaro, como chefe de Estado e chefe de governo (nessas horas me lembro dos defeitos do presidencialismo), deveria saber da importância de um censo. O recenseamento não traduz verdades absolutas. Mas produz um retrato confiável, academicamente falando, da sociedade. Governa-se por meio desse retrato. E quando não há um retrato? 

A resposta imediata a essa pergunta: governa-se no escuro. As políticas públicas e o orçamento da União são definidos em função de diagnósticos populacionais produzidos, em grande parte, pelos censos. No Brasil, os censos são decenais desde 1880. O último grande hiato foi em 1930, em função da instabilidade política causada pela Revolução. Mais um argumento para aqueles que defendem que nunca retrocedemos tanto na construção de um projeto republicano de país. 

De acordo com o governo, a questão é orçamentária. A crise econômica provocada pela pandemia direcionou os gastos para saúde ao mesmo tempo que impeliu o governo a cortar verbas de diversos projetos e pastas. Bom, sabemos que o Ministério da Defesa não sofreu cortes no orçamento para 2021 e ainda sobrou dinheiro para reajuste salarial das Forças Armadas. Dentre os programas do Ministério da Defesa, está prevista a compra dos caças do projeto FX-2, que envolve os Gripen suecos. A previsão de gastos é de R$1,59 bilhão, valor que é 147% superior ao previsto inicialmente para 2020. E vale lembrar aqui que a compra desses mesmos caças geraram investigações da Operação Zelotes em governos petistas por suspeitas de superfaturamento. Além da compra de caças, há R$646,8 milhões previstos para construção de submarinos de propulsão nuclear, o dobro do previsto em 2020. 

Com parte dos recursos para comprar os caças e para construir submarinos já dava para realizar o censo (que não ultrapassaria 2 bilhões) Então, a questão não deve ser dinheiro. 

O censo de 1920 pode nos ajudar a entender alguns aspectos sobre os usos das estatísticas (mesmo quando elas não são produzidas). A operação censitária de 1920 trouxe enormes melhorias técnicas e apresentou-se como um novo paradigma censitário. A tentativa de mostrar ao mundo que o Brasil estava se tornando um Estado moderno ficaria incompleta se tais mudanças não fossem expressas em estatísticas. Um dos prováveis objetivos deste censo era o de construir, e solidificar, uma identidade à população. Obviamente esta identidade deveria representar uma sociedade sem nenhum traço escravocrata e, como se tratando de Brasil isso era impossível, o censo de 1920 suprime a categoria raça. Contabilizamos então uma população sem cor, além de usar artifícios para superestimar a mão de obra empregada na indústria. Mais do que simples hiatos e “falhas” operacionais, estas características do censo de 1920 fornecem bons indícios para inferir que as estatísticas populacionais não são imparciais, nem esvaziadas de intencionalidade. A não realização do censo de 2020 só pode ser pensada nesse contexto, de apagamento ou mascaramento de diagnósticos sociais que escancarem o buraco onde nos metemos. 

Há pelo menos um alívio nisso tudo: ao não produzir um retrato da população, poderemos ignorar nossas mazelas e retrocessos. O governo poderá se libertar das responsabilidades. E para afundar neste mar de ignorância e cegueira, teremos submarinos. 


Imagem de destaque: Agência IBGE

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