Em defesa do Censo

Wojciech Andrzej Kulesza

Além das dificuldades postas pela pandemia e da escassez de recursos para a realização do censo demográfico, previsto para 2020, devemos considerar o negacionismo praticado pelo governo como um fator decisivo para sua postergação ou mesmo seu cancelamento. O desprezo do governo pela ciência, escancarado por suas desastradas ações no combate à pandemia e por sua criminosa política ambiental, pode ser constatado também pelos profundos cortes orçamentários na política científica e tecnológica do país. Mais grave ainda tem sido o tratamento dado à política educacional: redução de verbas, quebra da autonomia universitária e diminuição da carga horária destinada ao ensino de ciências no ensino médio, são algumas medidas que demonstram uma verdadeira ojeriza do governo pela atividade científica. As verdades duramente estabelecidas por essas atividades têm sido tratadas como meras opiniões subjetivas, subvertendo a rigorosa epistemologia praticada pela ciência.

No caso do censo, procedimento empírico primário, absolutamente necessário para se conhecer nossa realidade, base de dados fundamental para o desenvolvimento das ciências sociais indispensáveis para subsidiar nossas políticas públicas, é claro que não interessa a esse governo identificar e dimensionar as características da população brasileira. Para que exibir nossos indicadores econômico-sociais, como a desigual distribuição de renda ou o persistente analfabetismo se não existe vontade política de tentar minimizá-los? Além do mais, para que dar a milhares de jovens a oportunidade de se iniciarem na pesquisa social ao atuar como recenseadores? Esse mesmo negacionismo está por detrás da tentativa do CNPq de excluir as bolsas de iniciação científica dos projetos de pesquisa em ciências humanas, como se eles não tivessem nenhuma contribuição a dar para a sociedade brasileira.

Ao estabelecer essa falsa dicotomia entre as ciências, os negacionistas intentam descomprometer os cientistas da natureza com a sociedade, como se existissem ciências humanas e ciências não humanas! Tudo isto para que seus apoiadores possam dispor ao seu bel prazer dos resultados dos trabalhos desses cientistas, não para promover o conhecimento, mas sim os seus interesses. Assim, por exemplo, negam-se os resultados que demonstram a ineficácia da cloroquina no tratamento de infectados pelo Coronavírus, ao mesmo tempo em que se exaltam os que defendem seu uso intensivo. Corrompe-se assim o diálogo crítico entre os cientistas que faz o conhecimento progredir, embola-se o meio de campo da ciência, retardando-se assim o avanço do conhecimento. Não por acaso, esse comportamento tem sido associado aos períodos de obscurantismo na história, quando o dogmatismo vigente impedia que o conhecimento florescesse.

Mas a quem interessa o negacionismo? Ao se negar o conhecimento científico, fica-se sem nenhum grau de certeza a respeito dos acontecimentos, instaurando-se uma dúvida generalizada a respeito de tudo, sem saber o que é verdadeiro e o que é falso. Essa situação favorece o aparecimento das chamadas fake news, asserções falsas apresentadas como verdadeiras com a intenção de induzir os incautos a se comportarem de determinada maneira. Ao negar os efeitos benéficos das vacinas, do isolamento social e do uso de máscaras na prevenção dos efeitos adversos da pandemia, afasta-se determinados segmentos da população dessas práticas, agravando sua condição sanitária, muitas vezes levando-os até a morte. Favorecem-se assim extratos populacionais, aos quais geralmente pertencem aqueles que propagam essas falsidades. Não é à toa que se acusa o atual governo de genocídio, dado seu comportamento criminoso frente à pandemia.

Uma vez instaurada a dúvida no setor considerado o mais próximo da verdade dos fatos, a ciência, fica fácil estender o negacionismo a outros setores da vida social, tais como a política ou a economia, onde as falsidades se transmutam simplesmente em mentiras. De repente, fala-se que diminuiu o desemprego no Brasil e que a ditadura militar foi uma maravilha. Até mesmo verdades estabelecidas há muito tempo, como a de que a terra é redonda, são postas em dúvida, ao mesmo tempo que se apresentam como verdadeiros, velhos preconceitos, especialmente os relacionados à etnia e à sexualidade. Exatamente por causa disso, quaisquer investigações, quaisquer pesquisas, quaisquer inquéritos que estabeleçam a verdade dos fatos são violentamente atacados, inclusive com ameaças aos seus autores e, se possível, impedindo que sejam realizados. Como vem acontecendo com o censo.


Imagem de Destaque: Ministerio Secretaría General de Gobierno/Flickr

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