Formação em gênero e sexualidades nas licenciaturas: para que serve?

Rafael Siqueira de Guimarães1

Pouco antes de entrarmos nesta onda mais fortalecida de conservadorismo na gestão da educação no Brasil, em 2015, foram instituídas novas diretrizes para a formação inicial e continuada de professores (Resolução CNE/CP n. 02/2015), que foi posteriormente substituída pela Resolução CNE/CP 02/2019. Analiso que esta nova diretriz, que instala também a BNCC, retira todas as questões específicas sobre gênero e sexualidades presentes na Resolução anterior, considerada uma diretriz que avançou em diversos sentidos. 

As referidas diretrizes de 2015 não indicavam, entretanto, como é comum neste tipo de documento, quais são as formas que cursos de licenciaturas, formações pedagógicas, aperfeiçoamentos e especializações devem inserir estas temáticas, ficando a cargo da autonomia pedagógica de cada ente que propõe os referidos cursos. Todavia, é importante salientar como a gramática do documento, trazendo à baila esta e também outras discussões (como as dimensões étnico-raciais, de geração e religiosa, por exemplo) marca positivamente para a necessidade em realizar mudanças nas formações. 

Ao instituir as diretrizes para a formação docente em conjunto com a BNCC, a política pública retira estes temas do debate formativo e retornamos a um tempo em que nossas lutas precisam ser reelaboradas. No interior da BNCC não há muito espaço para além de conteúdos bastante específicos das áreas e penso que, assim, permaneceremos com professoras e professores vivendo situações escolares que suas formações sequer elencaram.

Sou docente de cursos de licenciatura há quase vinte anos e tenho a dizer o quanto sempre foi uma das minhas lutas a inserção destes temas nos currículos. Precisávamos, durante muito tempo, introduzir estas temáticas e sermos muitas vezes questionados por colegas que sempre defenderam que não se fazia tão necessário, já que teorias psicológicas, filosóficas ou sociológicas da educação dariam conta dessa questão sem sequer tocarem nelas especificamente.

Entretanto, ao encontrar pessoas egressas nos sistemas de ensino, formadas nessas licenciaturas, o fenômeno mostrava-se bastante diverso disso. Professoras e professores sempre enfrentaram situações que dizem respeito a gênero e sexualidades no cotidiano da escola para as quais não haviam recebido formação adequada. Geralmente, escondida num subtópico de alguma disciplina, poucas vezes trazia dimensões da realidade vivida na escola.

Ainda que tenhamos uma produção acadêmica primorosa no Brasil, este assunto nem sempre fez parte do espaço de formação e é desesperador para uma professora ou um professor em início de carreira perceber-se participante de situações que excluem pessoas gênero ou sexo dissidentes da escola, por desinformação. 

Penso que não basta um espaço subvalorizado nos currículos, mas a existência de um fórum específico para estas discussões. Cada vez mais precarizada, entretanto, com número de horas bastante reduzido, as licenciaturas, alguns dirão, não darão conta de trabalhar as metodologias para as áreas disciplinares a que se destinam. Eu me pergunto então: como um professor de qualquer área pode atuar sem um conhecimento básico sobre identidades de gênero e sexualidades? Via de regra, estas questões de gênero e sexualidades sempre foram relegadas a docentes de biologia ou ciências quando do estudo do corpo humano. A existência de pessoas gênero ou sexo dissidentes, situações que poderiam indicar algum tipo de violência sexual dentro ou fora da escola, debates sobre a sub-representação feminina nas ciências, por exemplo, não costumam ser muito problematizadas nas licenciaturas.

O que pode um corpo? O que significa feminismo? Existem feminismos ou feminismos? Qual a diferença entre orientação sexual e identidade de gênero? Tratar destes assuntos não é tratar de conteúdos propriamente ditos, mas de situações do cotidiano da escola, portanto, são assuntos atinentes à prática e para pensarmos a equidade que está referida na diretriz é importante que estes assuntos estejam demarcados nos currículos. Trata-se, por certo, de um grande desafio, mas é um desafio que diz respeito a uma escola em constante movimento, uma escola que faz parte de uma sociedade que é generificada e sexualizada. 

Estes assuntos são parte da vida e respeitar as diferenças, buscando a equidade, é papel de professoras e professores, portanto uma formação de licenciatura precisa tratá-los de modo específico. Com a BNCC e sua educação baseada em competências e conteúdos, vemos a exclusão mais explícita da temática de gênero e sexualidades que se desdobrará na exclusão de pessoas da escola.

 

1Integrante do Grupo de Pesquisa Psicologia, Coletivos e Culturas Queer-PsiCUqueer e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Unesp – Assis.


Imagem de Destaque: Patrick Fore/Unplash

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