Metáforas na guilhotina – insurgências

Ivane Perotti

Transbordava suores. Entre as mãos, um relho. Das tranças em fita de couro emergiam marcas de outros fustigos. Cicatrizes pulsantes no tempo das emoções.

Estalos secos batiam-lhe às costas nuas. Nuas, feridas de pronto e tanto. Tanto agora quanto antes: soma de atravessamentos mal resolvidos. Suava dores. Suava amores. Sofria a colisão de bólidos desgarrados: pedras no universo da criação.

Amarras conceituais emperravam-na. A antevisão do criado retorcia-se na placa móvel da apreciação. Fugia-lhe o prazer como também fugia a inspiração e a liberdade. Açoites de exigência faziam morrer o princípio da expressão. Presa, desfolhava-se diante da tela em branco. Em branco também, o corpo desfazia a noção de unidade. Pedaços não formavam o todo. Peças esvaziadas assombravam o espelho da mente. A mente no espelho descia o velho relho urgindo castigo. Fustigo.

Entre as palavras e as tintas, escolhera a dança. Em dança, sentira o conclame da música. Ao piano, tocara o invisível. De lá, tratara as vozes. Entre elas, poesias. Dos versos, voltara às telas. As manchas abriram palavras. Palavras dançaram nela. E deu-se criativa. Até o momento em que se descobriu sensível às críticas. Opiniões formadas no lodo da exclusão. Valores de comércio. Conceitos de opressão. Assustada, teceu cordas. Fardos. Pesos. Medidas. Números. Troncos. Pedras. Nubente da liberdade, separou de si o em si. Sentada no átrio frio, cobriu-se de pórticos densos. Apêndices do teatro vazio.

Em terapia com a imaginação, entregou-se ao ócio. Bailou solos. Construiu imagens. Revisitou a si e a outros. Cobriu telas, ouviu músicas, abriu folhas. Brincou com o inimaginável. Mas o processo é lento quando se perde o tento. Juízos pré-estabelecidos têm herança nos costumes, nas crenças, no cotidiano, em interesses que vão e vem. Ideologias tragadas a seco afogam o aspirante. Respirante. Assim, ela voltava ao espelho consorte com a pergunta de outra: _ Espelho, espelho meu. E, às respostas que jamais lhe pertenceram, corria o relho na velocidade dos suores. _ Espelho, espelho meu. Cordas em amarras mais fortes. _ Espelho, espelho meu.

Liberdades indo embora. _ Espelho, espelho meu. A fruição perdendo lugar. A imaginação condenada à caixa. Lento o processo de salvar a si e ao território da expressão.

No átrio da condenação, eis que, por entre os densos pórticos, assomou uma dália. Herbácea de porte médio, ali passava de 1,50m. Tão colorida quanto pesada, mal se mantinha sobre o longo caule. Com o capítulo floral tipo pompom, apresentou-se gorda de cores e pétalas. Algumas pétalas afastavam-se da haste, buscando lugar – compunham uma imagem de excesso. Aquela dália feria o princípio do equilíbrio natural. E foi a deixa para o antigo espelho levantar a questão: _ Espelho, espelho meu. Existe alguém neste reino …?

Se o processo de quebrar crenças e pré-conceitos é lento, a imaginação alimentada dá conta de muitas peças. Era mais ou menos o que acontecia com ela. Presa a valores alheios ao mundo que desejava, retorcia-se na queda de braço. As figuras de linguagem cortavam-na com dois gumes: criavam magia nas telas da significação, mas também escondiam discursos que, se expostos, assumiriam valor de pólvora. Resistia. Mas desejava insurgir-se. O desejo de reagir e levantar acima do posto, cobrava decisão. Indecisão.

Envolta em lâminas da guilhotina erigida por ela mesma, a artista tomou a dália entre as mãos e se pôs a observá-la. Sem perfume, pétalas macias, muitas pétalas, pétalas em excesso…talvez não! Pendia levemente, quase tocando a si mesma. Talvez não! Multicolorida, mesclava o roxo, o amarelo, o vermelho, o verde e o azul. Parecia excesso. Talvez não! E os olhos em preparo, desta vez, silenciou os conceitos pré-concebidos. Primeiro, porque a observação tem cantos. E cantos têm ângulos. Segundo, porque a questão particular era desatender às expectativas criadas. Terceiro, porque queria insurgir-se contra as opiniões que não lhe acresciam. Amava a arte como uma entidade indissolúvel, mas tomara para si que a perfeição lhe cabia como exigência. Deixara de sentir para moldar. Nos moldes, amarrara travas. Bloqueada, sofria a ordem da culpa e do demérito. A fruição e a liberdade perderam para o relho da fustigação. Perdera ela. Perdera.

Para o átrio, carregou-se. Música para ouvir, dança para escrever, tintas para cantar: estratégias da sensibilidade. Metodologia de insurgências necessárias. A artista desceu do átrio e ganhou o mundo. O mundo que lhe pertencia por direito e resistência. Aos pés da flor mesclada, um relho de fitas de couro procura a sua origem. Natural. Natural.

e veio ela

metáfora andante

cambaleante

farejar o cortejo

realejo

nota só

fole de ouvido

empedernido

lápide sonora

outrora

manivela de mão

guilhotina quente

pausa

reconstrução

átrio consorte

aporte

insurreição


Imagem de destaque: Ahmad Odeh / Unsplash.

 

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