“Falarei sobre a Magistratura”: Reforma no judiciário e felicidade aos povos!

Dalvit Greiner

Apesar do termo “congênito” não ser um sinônimo de “hereditário” a nossa Constituição de 1824, terrivelmente liberal, nasceu com problemas. E herdamos todos eles. Estávamos num momento de surgimento de nossas instituições e era fundamental que buscássemos corrigir problemas do Antigo Regime. Pois, não foi para corrigir os problemas do tempo anterior que fizeram a revolução em Portugal e a independência do Brasil? Trazer uma nova constituição e junto com ela a felicidade aos povos?

Na tentativa de corrigir alguma coisa, na Sessão de 16 de junho de 1826, Bernardo Vasconcelos dirigiu-se assim aos seus pares: “Falarei sobre a magistratura. Os desembargadores são isentos de responsabilidade por lei: eis uma classe privilegiada e a razão que se deu a esta quebra da legislação geral foi para que não perdessem o respeito e a consideração do povo. São pois, imunes de toda a violabilidade legal os magistrados que julgam coletivamente. […] Os juízes de fora, e outros magistrados trienais também são invioláveis de fato, porque a lei da residência de nada vale, serve unicamente para os magistrados gastarem algum dinheiro na mesa do desembargo do paço e da consciência e ordens. Tira-se a residência e afinal sempre o magistrado fica reputado um santo, porque os magistrados também têm o seu ponto de honra: um colega nunca deve morrer nas unhas de outro colega.”

A discussão em pauta era a Lei de Responsabilidade dos Empregados Públicos, uma espécie de lei que poderia ser traduzida com a expressão: o rei não erra, quem erra são os conselheiros. Já no Artigo 2o, vinha a máxima, escrita de outra forma: “Não salva da responsabilidade a ordem do Imperador, vocal ou por escrito”. Ou seja, se você obedecesse ao imperador, seria punido pela Assembleia Geral; se não obedecesse, seria punido pelo imperador. Essa lei de responsabilidade passaria a valer para todos os funcionários públicos, pois a Constituição havia quebrado os privilégios. Aquela ideia de que todos eram iguais…

Mas, “eis uma classe privilegiada”! O próprio Bernardo Vasconcelos sabia das dificuldades ou impossibilidades de mexer no privilégio dos magistrados, eclesiásticos e militares. Ora, havia na Corte do Rio de Janeiro um número bastante alto de magistrados, de eclesiásticos e de militares. Número bastante alto capaz de fazer frente à Assembleia e impor-se perante o imperador como alguém acima da lei. Homens que sabiam interpretar e do seu jeito. Interpretar a lei deu a esses homens um poder discricionário sobre os demais. E o que era um marcador social – ser letrado – levou a um privilégio de classe. Ora, todo grupo de privilegiados tem como primeira e principal característica encontrar-se acima da lei. A Constituição e a Lei são para os outros. O problema é que os nossos juízes e juizados já se implantaram no Brasil negando a Constituição de 1824 que encerrou todos os privilégios. O que era uma defesa, a inviolabilidade e credibilidade do juiz, passou a ser usado como privilégio, a faculdade de estar acima da lei. Para que se dê credibilidade ao sistema é necessário que funcione coletivamente, pois se o juiz erra o problema se volta para a instituição: quem julga o juiz? Se o judiciário, de fato, corrigisse o juiz, a instituição funcionaria melhor.

Nesse mesmo discurso, Bernardo Vasconcelos vai nos dando um passo-a-passo da impunidade do juiz. O juiz já tinha mecanismos de fuga para que nunca fosse atingido ou julgado, mesmo se acuado: pede-se licenças a um juiz para processar um outro juiz que só é concedida para depois; e, mesmo depois, não serão acusados sem nova licença que é solicitada a outro juiz. Ou seja, nunca! Assim, aquela ideia de que a instituição é incorruptível se perde, na medida em que falha a primeira publicidade: se um membro da instituição erra, como ele será punido? Não sabemos, uma vez que os Conselhos de Ética existem apenas no nome, pois, “um colega nunca deve morrer nas unhas de outro colega”.

Recentemente, o advogado de André do Rap, usou um artigo da lei que exigia aos juízes que olhassem para os presos de tempos em tempos. Deviam confirmar ou não a sua prisão. Lei muito boa que poderia colocar fora das penitenciárias uma imensa quantidade de presos que nem sabem porque estão lá. Mas, os juízes estão sobrecarregados e devem ser provocados (sentem-me mesmo como se fossem o Estado) e só provoca juiz quem tem dinheiro. Quem não tem dinheiro nem faz ideia dessa lei. Ou seja, uma lei para salvar ricos, apenas. Assim, Marco Aurélio leu a lei, errou em não mandar nem uma cartinha para o juiz de primeira instância que errou, também, em não olhar o processo. O chefe do PCC foi para a rua, saiu pela porta da frente e sumiu. E nenhum juiz será punido. Mas, não custa repetir: “um colega nunca deve morrer nas unhas de outro colega”.

Chegamos ao bicentenário da Independência do Brasil com várias constituições e ainda não vimos uma reforma do judiciário que desse credibilidade à instituição. Os últimos exemplos só nos fazem lembrar do passado. Ah! e publicidade dos atos não é transmitir julgamento pela TV: é outra coisa!


Imagem de destaque: Desembargadores chegando à Casa de Suplicação – Gravura de Jean Baptiste Debret. Fonte: Brasiliana Iconográfica

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *