Zumbi e quilombos implícitos nos atores e nas práticas educativas emancipatórias

Vanessa Barbosa Guimarães1

Rubens Ferreira do Nascimento2

Existem controvérsias importantes em torno da lendária figura de Zumbi dos Palmares, que permeiam o imaginário e memória do Brasil. Conforme Gomes (2019) encontram-se disponíveis diversas narrativas sobre quem foi Zumbi. Algumas, sob perspectivas dos grupos sociais dominantes, o desenham como perigoso ou não exemplar e outras destacam seus ideais de luta e resistência atrelados à liberdade e sobrevivência dos quilombos. Há, portanto, versões que o evocam como herói dos colonos, do Brasil independente, da classe trabalhadora, dos negros oprimidos e também como representante gay. Assim, são preenchidas, ideologicamente, lacunas históricas que apresentam Zumbi como referência ou não para a identidade brasileira a partir de distintos grupos políticos e movimentos sociais. Na versão assumida pela Fundação Palmares, que também é discutível, Zumbi nasceu livre em 1665 na Serra da Barriga, União dos Palmares, em Alagoas. Foi criado por um padre e aos quinze anos foge de casa para dedicar sua vida à luta contra a submissão de seu povo. Tendo se tornando líder quilombola, foi ferido quando a capital Palmares foi destruída em 1694, sendo morto e decapitado no ano seguinte.

As lacunas e distintas versões da história nos autorizariam a falar de Zumbi dos Palmares e a legitimarmos o 20 de novembro como dia da morte do líder quilombola? Elaboramos esta escrita nos valendo do fato de que a figura histórica e/ou imaginária de Zumbi tem ligação com a realidade dos quilombos no Brasil e, esta, muito comunica sobre as relações étnico-raciais em nosso país, como também de outros países colonizados que compõem a América Negra, ou seja, países que receberam pessoas negras com a finalidade da escravização e que, atualmente, educam juntas, principalmente nas camadas populares, crianças e jovens de diferentes raças e etnias. Nosso propósito é propor uma discussão que direcione para relações e experiências étnico-raciais nas escolas objetivando sensibilizar e mobilizar educadoras/es para potencializarem suas práticas educativas emancipatórias. Queremos estabelecer na produção um tom dialogal e provocativo. Por isto, desde já convidamos você a permitir-se a revisitação das suas origens e advertimos para que isto ocorra nos moldes de uma (auto)análise subjetiva e social da sua práxis.

Nós, autora e autor, somos uma mulher preta e um homem preto. Talvez você pergunte: Qual a necessidade destas informações? Sem querer sermos chatos, queremos responder com outras questões: Como você se olha no espelho? Como se autodeclara? Como você é identificada(o) pelos outros? Que lugares seu corpo ocupa na sociedade e em sala de aula? No país onde ainda impera o mito da democracia racial, essas questões podem parecer banais. Convictos sobre existência das assimetrias raciais e do racismo no Brasil, compreendemos que seu corpo e o modo como você se apresenta comunica muito além da sua condição institucional como docente de uma ou mais escolas, situada (s) em determinada (s) regiões etc. Afinal de contas, racismo, hierarquia racial, discriminação e preconceito raciais não são problemas de negros e indígenas. Comunicam sobre as relações étnico-raciais e envolvem a todos, principalmente as pessoas e grupos sociais brancos. Não se pode negar ou minimizar o fato de que foram grupos sociais brancos que inventaram o conceito de raça no contexto das colonizações, sequestros e escravizações de pessoas e povos africanos, seguidos de outras violações de direitos, como torturas e estupros. Observa-se que por meio de omissão, silenciamento ou na menção superficial e pouco comprometida com a temática – naquele fazer “para cumprir tabela” – adota-se, nas escolas e fora delas, diferentes caminhos favorecedores da falta de reflexão, dentre outras coisas, sobre o papel e a responsabilidade das pessoas e grupos brancos. Colocando em relevo a necessidade de contemplar a questão racial em suas dimensões relacionais e de poder e, consequentemente, se estudar a branquitude, a pesquisadora Maria Aparecida Silva Bento afirma que reitera-se persistentemente as desigualdades sociais no Brasil como um problema exclusivamente do negro, pois só ele é estudado, dissecado, problematizado (BENTO, 2002). 

O 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra, consta no calendário nacional por força da Lei 12.519 de 2011 e é considerado feriado facultativo (GOMES, 2019). Mencionar a lei pode nos remeter às obrigações de nossas práticas que nos chegam, muitas vezes, de forma arbitrária. Nesse sentido, pensemos na Lei n° 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, e estabelece diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”. Convidamos, então, você para pensar no cotidiano da escola. Como sua prática se organiza e situa-se, certamente, para além do cumprimento obrigatório das leis, regras e normas institucionais e organizacionais na escola? 

Para participar das suas reflexões apresentamos brevemente reflexões nossas a partir de duas práticas de extensão universitária da PUC Minas com nossa participação: a) um estudo sobre relações étnico raciais no campo da justiça restaurativa e mediação de conflitos; b) uma intervenção psicossocial realizada nos quilombos de Brumadinho-MG. Iremos nos restringir aqui a dois pontos. O primeiro é relação entre sujeitos no ato educativo. Isso porque em todo processo relacional, partimos de lugares e identificações. O que me fez optar por esse campo? Como esse grupo me recebe? Como enxergo essa realidade? Pretendo colocar-me de forma imparcial, com a justificativa de que profissional e pessoal não se misturam? Por mais aleatório que possa ser o processo de designação, o que move seu fazer? Pode parecer óbvio, mas para pensar a dimensão étnico-racial e atuar em uma via antirracista é preciso falar do corpo, não apenas dos outros, mas, sobretudo, do seu. É reconhecer a identidade brasileira que constituiu seus traços e localizar-se politicamente rumo a uma prática minimamente emancipatória. Nas nossas experiências temos compreendido o quanto nossos corpos, papeis sociais, identidades e subjetividades enquanto mulher negra e homem negro, nos conduzem a uma experiência de nacionalidade diferenciada” (EVARISTO, 2009).

O segundo ponto relevante é o lugar, toda atuação é contextualizada em um dado momento histórico, motivações para a prática e um território. Onde sua escola se situa? A quem atende e a qual lógica serve? Nesses questionamentos, trazemos o imprescindível para nosso fazer com perguntas do tipo: O que é um quilombo? Como o Brasil multirracial é visto de fora e por seus povos? O que sabemos com consistência e sem motivações preconceituosas sobre a religiosidade e a cultura afro-brasileira e indígena? Temos boas reflexões críticas e autocríticas sobre o sexismo e o racismo no Brasil. 

Estudar, dialogar e refletir a partir de perguntas como estas pode ampliar nossas capacidades de compreensão e gerar conscientizações. Algo de semelhante pode se dar na atuação da educadora e do educador. Pergunte-se e aos outros (pares, alunos, familiares) o que você sabe sobre a realidade que lhe rodeia, qual posicionamento construiu a partir dos conteúdos de sua formação e o que a experiência, que é sempre social, tem lhe ensinado? Essa intersecção de saberes é capaz de tecer um novo tipo de conhecimento, que chamamos de transdisciplinar. Conhecimentos, práticas, ética e inventividade, levam-nos a concluirmos que estamos no caminho de nos tornarmos sujeitos. 

Esse texto, quer ser um mediador do encontro seu, leitora e leitor, consigo mesma (o) e com o cotidiano da sala de aula. Zumbi e o Dia da Consciência Negra se oferecem como motivações para a reflexão sobre a história e a nacionalidade brasileira, enraizada no movimento de lutas e conquistas na direção da igualdade e da equidade humanas. Professora(o), você vê isso? Destacar e valorizar a diversidade presente em si, nas suas relações e na escola é buscar romper com elementos conservadores e injustos que fizeram parte da nossa trajetória formativa, ampliando seu repertório e favorecendo processos de ensino-aprendizagem emancipatórios nos quais as pessoas participantes da comunidade escolar, alunos e educadoras/es, se reconheçam e gozem de uma convivência produtiva e saudável.

 

1 – Vanessa Barbosa Guimarães. Graduanda em Psicologia, pesquisadora e extensionista. Experiências discentes em atendimentos clínico e psicossocial e em temáticas relativas à saúde mental, álcool e outras drogas, política pública de segurança, orientação profissional e história de vida de lideranças comunitárias quilombolas. e-mail: vguimaraesmj@gmail.com

2 – Professor de Psicologia Social na PUC Minas. Coordenador de projeto de extensão em Mediação de Conflitos e Justiça Restaurativa. Mestre em Psicologia (UFMG) e Doutorando em Educação (UFMG).

 

Para saber mais

BENTO, Maria Aparecida Silva. Branquitude e Branqueamento no Brasil. In: CARONE, Iray e BENTO, Maria Aparecida da Silva (Org.). Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2002. (Ótimo texto e livro para conhecimentos e reflexões sobre branquitude e branqueamento.).

EVARISTO, Conceição. Literatura negra: uma poética de nossa afro-brasilidade. Scripta: Belo Horizonte, 2009. (A autora é uma referência atual e muito competente em termos de qualidade literária e para se contemplar a experiência de mulheres e pessoas negras no Brasil.).

GOMES, Laurentino. Escravidão: do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares. Globo Livros: Rio de Janeiro, 2019. (Livro com uma versão crítica interessante e com linguagem acessível e agradável, apesar de usar termos naturalizantes como “escravidão” e “escravo” que não são recomendáveis.).


Imagem de destaque: Jeff Nyveen 

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