Pollyanna Franfes Xavier¹
Luciano Silveira Coelho²
Fique em casa! Imperativo repetido há pouco mais de um ano e que evidencia a diversidade de realidades, a pluralidade e as vulnerabilidades da sociedade brasileira.
A rotina alterada levou muitas famílias a uma convivência intensa e desconhecida – crianças invadindo reuniões de trabalho, mães e pais compartilhando com as professoras as atividades escolares, como lidar com o tempo e o espaço do outro, o tédio, a falta de socialização, frustrações e demandas sem fim.
A realidade de cada família é única e as possibilidades de cada grupo são singulares, mas há fatos comuns a toda a população: há mais mulheres, sobretudo mães, que perderam seus empregos, exercem volume imenso de trabalho não remunerado e estão exaustas, adoecidas. Vivemos ainda numa sociedade adultocêntrica, em que a criança é rotineiramente desconsiderada na tomada de decisões, e pouco pode se colocar. Estes fatores impactam a convivência.
Imaginamos uma quarentena de semanas, quiçá meses. Agora, mais de um ano depois, talvez possamos avaliar este tempo pensando nos deslocamentos e reposicionamentos no âmbito doméstico. Que efeitos de reinvenção ocorreram? Outras e novas relações puderam surgir entre as pessoas e com o espaço da casa.
“Nossa memória se constrói no espaço e não no tempo”, aponta Gandhy Piorsky. A casa foi ressignificada e passou a ser habitada por novos sentidos. A cozinha e a mesa voltaram a ser locais privilegiados de partilha. Nos lares onde às crianças é permitida a autonomia, surgem cabaninhas sob a mesa, sofá vira navio, panelas soam música. As relações afetivas com o espaço e os objetos ganharam relevância e comporão muitas memórias de infâncias.
Também as relações interpessoais puderam remodelar-se pelas negociações – sobre o uso dos espaços, mais tempo juntos, necessidade de silêncio e solidão, de abraço e acolhimento. Cuidados pessoais, coletivos e com a casa, escola, trabalho, descanso, brincadeiras, subjetividades, lutos, saudades… Tudo coabitando. Aprendemos mais uns sobre os outros, divisão de tarefas, responsabilidades compartilhadas e individualidade.
Apesar disso, ao menos uma questão reside e parece inevitável: como será a vida pós-pandemia? Certamente não há uma única e simples resposta para tal indagação, mas há aqueles que arriscam algumas previsões. “O “home” será mais “office” do que nunca!”, “O futuro da Educação é o ensino híbrido!”. Essas são apenas algumas das questões que merecem um amplo e profundo debate. Dificilmente chegaremos a consensos sobre os desafios que se apresentam em nossa sociedade, mas talvez possamos iniciar nos questionando: que mudanças e permanências desejamos para uma vida pós-pandemia?
Em abril de 2020, em entrevista ao Jornal El País, quando questionado sobre “ o que é o pior do confinamento às crianças?”, o psicopedagogo italiano Francesco Tonucci respondeu: “Deveria ser não poder sair, mas é mentira porque infelizmente também não saíam antes”. Nesse ponto, Tonucci nos ajuda a pensar nas mudanças urgentes e necessárias que a vida em isolamento social nos ajudou a enxergar. Nas últimas décadas, as sociedades ocidentais contemporâneas têm retirado progressivamente a autonomia e a circularidade das crianças e adolescentes nos grandes centros urbanos. É preciso repensar esse caminho, refazer nossas relações com os nossos tempos e espaços e conceber cidades que sejam capazes de acolher a todos.
Em momentos assim, é sempre bom lembrar os ensinamentos de nossos ancestrais. Existe um provérbio africano que diz: “para educar uma criança é preciso uma aldeia inteira”. Foi preciso perder nossa rede de apoio social para que pudéssemos notar sua importância. Se a nossa relação com a cidade carece de mudança, o que precisa permanecer é a noção de aldeia. O “home” não pode ser “scholling”. Os tempos e espaços da infância precisam ser diversos e compartilhados.
A vida em isolamento social nos ajudou a olhar para dentro e refletir sobre o que tem acontecido lá fora. Em última instância, pudemos aprender mais sobre amor, para seguirmos juntos e sãos. Como nos ensinou Guimarães Rosa: “Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura.” E precisamos deste descanso!
1Pollyanna Xavier é mãe da Alice e do Miguel, bacharel em Psicologia pela UFMG, especialista em Clínica Psicanalítica, produtora cultural na Aldeia Jabuticaba e artista visual. E-mail: pollyanna@aldeiajabuticaba.com.br
2Luciano Silveira Coelho é pai da Maria Júlia, graduado em Educação Física (UFMG), Mestre em Lazer (UFMG), Doutorando em Educação (UFMG) e professor do Departamento de Ciências do Movimento Humano da UEMG/Ibirité. E-mail: luciano.coelho@uemg.br
Para saber mais:
GUIMARÃES ROSA, J. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
PIORSKI, Gandhy. A criança e a casa, 2020. Disponível em: https://app.nutror.com/v3/curso/f6905a3b5370ecf2868593777103a48b0bb2f7b9/cochicho-online-ideias-para-espichar-a-imaginacao/aula/1752926
Imagem de destaque: Laís Gouvêa/Tanto Mar Fotografia