Rememorar é reviver? Consequências dos apagamentos
Gisele Carreirão Gonçalves
Alexandre Fernandez Vaz
Esquecer: verbo que denota nossa incapacidade de acessar lembranças de outrora. A impossibilidade de revisitar o passado pode ser resultado de sofrimento ou mesmo de uma patologia ou ainda, quem sabe, ato deliberado. Muitos mistérios rondam o esquecimento, e ainda que a medicina, a psicologia e a psicanálise se esmerem em explicá-lo, nem todas as respostas estão dadas.
É do esquecimento que queremos tratar aqui, trazendo à cena histórias de dois personagens que, se por um lado, são antagônicas, por outro, se encontram. Desejamos jogar luz sobre o estado de esquecimento de Maria Lucrécia Eunice Facciolla Paiva, diagnosticada nos últimos anos de sua vida como portadora de Alzheimer. A história foi contada pelo filho, o escritor Marcelo Rubens Paiva, em 295 páginas publicadas pela editora Objetiva em 2015 sob o título de “Ainda estou aqui”. Não por acaso, dada a singularidade da obra (do livro, mas também da vida), no início deste novembro o enredo chegou às telas do cinema, aclamado pelo público e crítica. Podemos supor que o diretor Walter Salles, ao lado do autor do livro que lhe deu origem e do renomado elenco, que conta com Fernanda Torres, Fernanda Montenegro e Selton Mello, dedica-se ao não esquecimento? O empreendimento cinematográfico (antecedido pelo literário) é uma forma de que não esqueçamos a história desta mulher casada com um ex-deputado federal, considerado inimigo do regime por suas convicções políticas contrárias aos ditames antidemocráticos. Ele foi sequestrado por forças militares, torturado e morto, mas isso tudo só se soube concretamente muitos anos depois. Travou-se desde sempre uma luta inglória, porém necessária, entre o esquecimento e a recordação.
Ao encerrar a leitura ou ao sair da sala de cinema, fica a inquietante dúvida se Eunice resolveu (e aqui não com a mesma simplicidade que resolvemos, por exemplo, não mais comer doces devido à alta taxa de glicose), por meios complexos da condição humana, que não mais recordaria. O passado foi duro e violento demais, já não mais valia a pena rememorá-lo, embora seu filho advirta que a vitimização nunca foi permitida em seu lar. Se vitimizar-se era rechaçado, o sofrimento era inevitável, afinal, pensemos em dias de tortura, silenciamento, encarceramento e mortes como consequência da oposição política; do sumiço de pessoas que jamais retornaram para as suas famílias, estando vivas ou mortas. Falamos do período em que o Brasil viveu sob ditadura militar (1964-1985), mais precisamente a respeito da década de 1970, quando a história narrada em livro e filme ganha seus contornos decisivos.
Se há quem patologicamente esqueça, tem apagado alguns ou muitos registros de sua memória (além do fato de que não lembramos de tudo, nem poderíamos), outras formas de olvido não estão associadas à demência, a transtornos tratados pela psiquiatria e/ou neurologia; há aqueles incompreensíveis, capazes de (tentar) anular as experiências e os relatos de tempos pregressos. Em nome desta amnésia histórica age-se criminosamente, defendendo o emprego de técnicas brutais de poder, contrários que são seus agentes à divergência de ideias, e clamando a plenos pulmões pela volta da ditadura. Contraditoriamente eles e elas fazem tal apelo em nome da liberdade. Aqui cabe indagar se o fazem porque esqueceram os terrores vividos naquele período nada libertador, ou porque estão de acordo com os crimes cometidos. De qualquer forma, não é possível acomodar a liberdade nesse projeto de sociedade: regressivo, retrógrado, opressor, corrupto, fomentador de desigualdades, enfim, o avesso do que é livre.
Neste embalo, que substitui o diálogo pela violência, a pluralidade pela tentativa (tentarão, mas eis aí algo felizmente inatingível) de homogeneizar pensamentos, uma turba composta por pessoas de diferentes extrações sociais, atentou no dia 08 de janeiro de 2023 contra a democracia brasileira. Depredações de ordem patrimonial, mas também histórica e política, foram cometidas tendo como fio condutor o não reconhecimento do resultado das eleições presidenciais do ano anterior. Foram atos orquestrados bradando uma suposta liberdade, o que, então, autorizaria o fim do Estado democrático de Direito.
Pois bem, o que faz com que uma parte significativa da população se alie a tais ideias, e um fragmento dela invada e vandalize a Capital Federal? Lembremos que além das pessoas que lá estiveram, muitas atualmente presas, há as que participaram de outras formas, financiando, inflamando adeptos e adeptas com o discurso de ódio. São esses cidadãos e cidadãs de bem, como se auto proclamam, que agora reivindicam anistia, desconsiderando por completo a gravidade do crime cometido em Brasília sob a insígnia do patriotismo e do direito à liberdade de expressão.
Soma-se a esses infortúnios o lamentável episódio do dia 13 de novembro de 2024, quando Francisco Wanderley Luiz, em frustrado ato terrorista, intencionava explodir a Praça dos Três Poderes, espaço tão caro para a democracia. Sua investida não teve limites, chegando a provocar o fim da própria vida, ao atar explosivos ao corpo. Por fim, seu plano de destruir um símbolo nacional não vingou. O fato é que esse homem de 59 anos – que, portanto, viveu nos tempos da ditadura – não poupou esforços, planejou, pesquisou, disfarçou-se, mudou até de estado para colocar o seu (só seu?) esquema em ação.
O show de horrores não finda. Dias após o atentado, somos surpreendidos com noticiários esmiuçando um plano que almejava um golpe militar, em mais uma tentativa de impedir a posse do presidente eleito. O intento, que por si só já é estarrecedor, acaba ficando à sombra quando somos informados que se planejava a morte da autoridade máxima do Estado, escolhida pela maioria dos eleitores e eleitoras pelas vias democráticas. Além dele, seu vice e um ministro do Supremo Tribunal Federal, que à época do planejamento golpista respondia como presidente do Tribunal Superior Eleitoral, também eram alvos. São os recados daqueles dispostos e encorajados a propor o fim da democracia.
Se trazemos estes aterrorizantes recortes é para mostrar que esquecimentos (ou apagamentos?) alimentam os movimentos ultrarreacionários. Um expressivo quantitativo de brasileiros e brasileiras já não lembra dos horrores vividos na ditadura. Apagaram de suas lembranças que pessoas foram exiladas, torturadas, outras simplesmente desaparecidas, sequer tendo um corpo para ser enterrado? A morte, nesses casos, vem em forma de decreto, como bem lembra Marcelo ao falar da certidão de óbito de seu pai, emitida em 23 de fevereiro de 1996, após a promulgação da Lei 9140, de 4 de dezembro de 1995. Enfim, é oficializada a viuvez de Eunice.
Se a história dessa mulher é tão distante da de Francisco Wanderley, se as convicções de ambos são díspares, as pautas tão destoantes, suas batalhas dissonantes, a política e o esquecimento são ingredientes que alimentam os dois scripts. Ingredientes que agem, repercutem e trazem consequências que não têm similaridade, é verdade. Tramas que se separam cronologicamente, mas que se atualizam frente ao incendiário extremismo de direita, que é por onde andava Francisco. Jamais compararemos seu itinerário com o de Eunice, o que seria, no mínimo, uma injustiça com ela. Mas, visamos realçar as armadilhas do esquecimento, sobretudo, quando capilarizado na história e na política.
São essas inquietantes narrativas que tensionam o papel da escola na formação de seus sujeitos. O que se tem ensinado aos/às jovens e crianças? Que histórias temos contado? Quantos mocinhos e bandidos idealizados temos apresentado? Qual a carga de realidade impressa nas conversas pedagógicas? Até quando seremos benevolentes e deixaremos que se propague todo tipo de mentira? Ou ainda, que se negligencie saberes? Será que uma educação mais comprometida com a história e seus percalços, com a ciência não dogmática, não apontaria um horizonte menos desolador? Uma escola capaz de sensibilizar pelo conhecimento, e não brutalizar pelo apagamento. Uma escola que seja capaz de escrever: ditadura nunca mais!