Como é bom poder tocar um instrumento
(Caetano Veloso, cantando agora, no rádio)
87 dias de usurpação de um governo eleito pelo povo
Desafio posto, desafio aceito. Afinal de contas, o que é esse tal de Ensino Médio com qualidade que se fala, se quer, se luta? Luta-se, de um lado, contra a PEC 241 ou 55 (depende do lugar onde se encontra) que retira os investimentos em educação, saúde e tudo o mais que não seja juros. Adeus financiamento para o Ensino Médio num momento que se deve universalizá-lo, não restringi-lo. Na mesma trincheira, porém do outro lado, a MP 746 que transforma o Ensino Médio naquele lá do ano 1971, que encheu o mundo de Técnico de Contabilidade (quase virei um). Então, o quê?
Meus quarenta anos do título é um retorno a 1976. Cinco anos antes, o regime militar havia editado a lei 5692/71 e com a expansão do Ensino Fundamental obrigatório consegui fazer a antiga 5ª. a 8ª. séries, quando o Grupo Escolar virou a Escola Estadual “Três Poderes”. Primeira turma. Um monte de adolescente pobre sonhando um montão de coisas. Eu não tinha noção alguma de qualidade do ensino. Eu só queria estudar. Eu só queria adolescer. Deixar o cabelo crescer, curtir Milton Nascimento e Chico Buarque na rádio JB FM, desenhar e conhecer o máximo de coisa que podia. Mas, como fazer Ensino Médio sem dinheiro?
Fazer Ensino Médio de quê? O cardápio da época incluía coisas pouco interessantes para mim: mexer com bosta nos cursos de Patologia Clínica; mexer com números nos cursos de Técnico em Contabilidade, de preferência no conceituadíssimo IMACO (Ah, o saudoso IMACO do Parque Municipal no Centro de Belo Horizonte: destruído e depois demolido!); mexer com crianças nos cursos de Magistério, de preferência no Instituto de Educação, onde se formou uma minha irmã mais nova, hoje excelente e invejável professora. Não queria nada disso. Eu já sabia o que queria estudar: o problema é que não tinha – ou não achava – o curso que queria. E, o que é pior: ainda sem dinheiro. Como e o quê fazer?
Lá fora das minhas indagações e sonhos, o regime militar comendo solto e eu só querendo curtir a cidade e adolescer cada vez mais, torcer para o Reinaldo jogando no Galo e na Seleção e desenhar. Os grêmios escolares estavam muito bem mortos e eu nem fazia ideia do que era isso. Fiquei um ano sem trabalho e, portanto sem estudar (isso mesmo, já trabalhava desde os dez anos). Enquanto isso, procurava escola, queria desenhar, queria escrever, queria arte. Dá para imaginar o meu desespero? Não havia escola pública na periferia para nos atender. Aquelas que lá haviam, quase na periferia, só mexiam com bosta, números e crianças. Eu não queria nada disso: eu queria desenhar.
No segundo semestre de 1976 consegui um emprego: números. Trabalhava num escritório de contabilidade e no ano seguinte tentaram me seduzir e depois me empurrar para um curso técnico de contabilidade. Não, eu não queria mexer com números: eu queria desenhar. Naquele fim de ano encontrei uma escola com o Curso Técnico de Desenho Publicitário. Uma única escola em Belo Horizonte onde nós, os malucos por desenho artístico, prancheta, tintas, canetas e lápis coloridos, poderíamos realizar nossos desejos adolescentes estudantis. Uma única turma no colégio, pequena, com alguns adolescentes – em geral homens e poucas meninas – desenhávamos. Devíamos ter nos formados Técnicos em Desenho Publicitário: houve problemas legais que não saberia dizer quais e o curso acabou, sem nos diplomar. Mesmo assim, aperfeiçoei-me no Senac da rua Tupinambás, trabalhei como freelancer em várias gráficas de Belo Horizonte, fiz fanzines e montei jornais nos bairros. Fiz serigrafia por quase dez anos. Ainda hoje, adoro fazer cartazes.
Por isso, fico hoje sonhando com um Ensino Médio onde nossos adolescentes possam desenvolver o desenho, a comunicação, o corpo. Onde possam estudar Arte e Filosofia e Sociologia para pensar e entender a arte; onde possam fazer arte. Onde possam fazer desenho, teatro, música, cinema, rádio e tv e vídeo, cartazes, serigrafia, moda e muito mais e muitas outras coisas. Onde as ferramentas – Português, Inglês, Matemática, Informática, etc – sirvam a Arte, a Filosofia e a Sociologia e estas pensem a vida em sociedade.
Quando Coordenador Pedagógico, entrevistado por estagiários do curso de História da UFMG, fui perguntado se acreditava no potencial de nossos estudantes adolescentes da Educação de Jovens e Adultos. Respondi-lhes que sim. Que sempre acreditei que todos são capazes de aprender e fazer coisas incríveis. O que nos falta é uma escola, enquanto parte do poder público, provida materialmente para desenvolver todas as possibilidades que surjam diante dos professores. Uma escola que possa desenvolver toda e qualquer vocação que apareça na cidade. Quarenta anos depois, continuo sonhando com uma escola onde eu possa desenhar. Eu e muitos outros meninos.