Woodstock, juventude, ruínas do presente

Alexandre Fernandez Vaz

Há quase cinquenta anos, em agosto de 1969, aconteceu em uma fazenda da pequena cidade de Bethel, estado de Nova York, nos Estados Unidos da América, aquele que ficou conhecido como Festival de Woodstock. Durante três dias, centenas de milhares de pessoas se misturaram entre si, com a lama e algo mais, frente a um palco em que se revezaram gente do quilate de Janis Joplin e Jimmy Hendrix. As imagens do festejo são famosas e compõem a memória coletiva do nosso tempo, montadas e remontadas em cortes rápidos que sugerem, com trilha sonora correspondente, uma celebração do FlowerPower, em constante contraste com a Guerra do Vietnã, desastroso evento que ao festival foi contemporâneo. Atribui-se a Ho Chi Minh a opinião segundo a qual a Guerra seria vencida também longe dos campos de batalha do sudeste asiático, lá mesmo onde a “Besta”, para usarmos aqui com alguma liberdade o adjetivo que o dramaturgo alemão Heiner Müller destinou aos Estados Unidos, tinha sua morada. Era preciso vencer a disputa pela crítica da opinião pública norte-americana. Isso só foi possível porque as imagens chegavam, quase em tempo real, a cada televisor da América.

No filme de Ang Lee, Aconteceu em Woodstock (Taking Woodstock), baseado em uma história real, lá pelas tantas assistimos a um bombeiro hidráulico, chamado para tentar conter os excessos de um banheiro funcional, dizer que tem dois filhos, um no Festival, outro no Vietnã, mas que preferiria que os dois estivessem ali, sujos de lama. Este é o tom do famoso evento, segundo minha interpretação do filme: um acontecimento que só pode mesmo ser um marco na história contemporânea dos Estados Unidos não porque teria sido uma ode ao amor e ao não convencional, mas porque foi uma celebração da free enterprise, a livre iniciativa.

Ang Lee é um cineasta das profundezas da América, ainda que essas não estejam para ele, necessariamente, nos grotões do país que adotou como seu, e mesmo que pareça, muitas vezes, que seus personagens são apenas caricaturas de si mesmos. Se em O segredo de Brokeback Mountain estava em jogo o fim de uma condição, a do cowboy e do país rural, e de toda uma masculinidade que lhe correspondia, antes, em Tempestade de gelo é a juventude que já não é esperança e a família que não se reafirma mais como instituição confiável. Para Ang Lee as profundezas estão nas vicissitudes e fracassos do cotidiano, ressurgindo em Aconteceu em Woodstock na forma das tensões que compõem o personagem central. Eliott (Demetri Martin) é um jovem atento às oportunidades que, repentinamente, se coloca como protagonista a viabilizar o grande concerto, ameaçado por dificuldades administrativas diversas, sem local a abrigar-lhe a estrutura e a expectativa do enorme volume de espectadores. O filme todo gira em torno dele, que não se supõe que possa se alistar para o Vietnã, mas que tampouco representa a contracultura. Assistimos sua tentativa de, adulto tardio fazendo as refeições com os pais, livrar-se da culpa e da infinita demanda de amor que projeta sobre a mãe judia, imigrante russa às voltas com a perseguição, real e imaginária, que lhe consome os dias. No pequeno vilarejo a ponto de ser assaltado por centenas de milhares de hippies, a família judia possui um pequeno hotel de férias, decadente, maltratado, à beira da ruína financeiro. A chance que se apresenta é a de quitar a hipoteca, fazer dinheiro, reformar o empreendimento. O espetáculo seria em fazenda próxima, propriedade de uma família igualmente judia.

Depois de tentar a sorte como artista no Village, Eliott encampa o projeto que lhe cai no colo. Mas, nas entranhas do mito muito norte-americano que diz que a dádiva do sucesso é individual e meritória, é razoável que o êxito, alavancado por uma licença para um outro evento e que lhe custara um mísero dólar, seja o resultado. Afinal, o jovem que fracassara na grande cidade é presidente da prosaica câmara de comércio de Bethel, flerta no apoio à arte de vanguarda (abriga no celeiro do hotel um troupe teatral), resiste resignadamente às agressões antissemitas que a família sofre.

É emblemático que as tentativas de Eliott de chegar ao concerto sempre malogrem, seja porque no caminho ele encontra ácido e sexo com um casal de hippies em uma Kombi, deixando-se mergulhar naquele mar de sensações que se misturam às cores e formas orientalistas, ou ainda porque, quando finalmente alcança a fazenda, o espetáculo está suspenso por conta de um colapso causado pela insuficiência de sua estrutura técnica. Lá só há lama, excrementos e descargas elétricas fora do lugar. Chegar a ponto de ver o palco, só mesmo ao final do filme, já de saída de Bethel, quando só restam escombros e sujeira. Mais importante do que chegar a Woodstock, no entanto, havia sido divertir-se com aqueles que se hospedam ou trabalham no hotel e assumir discretamente a sexualidade desviante. E ganhar o dinheiro que ele ainda acreditava ser necessário.

Não apenas Eliott, mas tampouco nós conseguimos ver algo do Festival em si, já que o filme não o mostra e tampouco seria necessário. A utopia não está em Woodstock e na lama que faz as vezes de parque de diversões, ou ainda em San Francisco, destino preferencial pós-evento. Ou melhor, está lá mesmo, mas como aprendizado para self-made man. E só. Por mais que o festival pareça romântico em sua tentativa de fazer um brado anticivilizatório, ele apenas reafirma a livre inciativa, a free enterprise, seja dos organizadores do evento, de Eliott ou dos espectadores, preocupados com o deleite hedonista que, hoje, encontra seu desiderato, entre outros, no culto exacerbado ao corpo.  Não por acaso, há uma enorme atenção à produção excrementícia. Em dado momento, assistimos a um dos organizadores muito preocupado, ao telefone, com os alimentos que poderão ser servidos. Ele pede que se traga banana, arroz ou qualquer outra coisa que possa prender um pouco o ventre da multidão. Humano, demasiadamente humano.

A concreção da “utopia” parece ser equivalente ao esforço de livrar o hotel da bancarrota, movimento que se revela, ao final, apenas tolo. Não há ruptura em Woodstock, mas apenas atualização da face mais cruel do sonho americano. Aquela juventude encontrou nas décadas seguintes o seu futuro, que não foi o litoral sul da Bahia ou a venda de artesanato nas praças das grandes cidades, mas Wall Street, a bolsa, o cinismo e o fim da política em favor do capital, marcas do tempo presente.

Uma versão mais breve deste texto foi publicada, sob outro título, no suplemento cultural Anexo Ideias, do jornal A Notícia, de Joinville, em 2012.

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