Universidade e cultura popular: um reconhecimento

Alexandre Fernandez Vaz

Fábio Machado Pinto 

No final do ano passado, o Conselho Universitário da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) aprovou a concessão do título de Notório Saber em Educação para Norival Moreira de Oliveira. 1 Foi a primeira vez que uma universidade brasileira concedeu a honraria a um Mestre de Capoeira. A escolha não foi fortuita, já que Mestre Nô é expoente da Capoeira Angola no Brasil e no exterior. Reconhecido no meio popular, conhecedor dos fundamentos, tradições e narrativas, Nô é guardião da cultura popular, arquivista de memórias.

O processo começou em 2011, quando um grupo de capoeiras retomou entrevistas feitas na década de 1990 por pioneiros do jogo em Florianópolis, acessando também resultados da Nova cartografia social dos povos e comunidades tradicionais do Brasil, publicada em 2010. Capoeiras dos grupos Palmares e Quilombola, de todos os cantos do planeta, assim como pesquisas em acervos privados, rechearam o dossiê de Mestre Nô com documentos, fotos, vídeos, reportagens, entre tantos materiais.

Uma semana, em de julho de 2013, seria, no entanto, decisiva. Um grupo acompanhou Mestre Nô pelas veias abertas de São Salvador da Bahia de Todos os Santos, a periferia do território soteropolitano, com seus três milhões e meio de habitantes. Mesmo que todos estivessem acostumados a escutá-lo havia muitos anos, um novo universo como que se abriu ao conhecimento e à sensibilidade social e política de cada um. Acompanhar o Mestre permitiu conhecer uma cidade e saber algo de um país e de sua história encarnada nas formas de dominação – e de resistência. Com tudo isso, em 2014 o dossiê foi entregue e o primeiro parecer emitido.

Mestre Nô iniciou formalmente sua trajetória de ensino da Capoeira ainda nos anos 1960, na Cidade Baixa, em Salvador. Migrando por distintos endereços e denominações, todas elas vinculadas ao enraizamento histórico e social do jogo, funda, em 1979, a Associação Brasileira Cultural de Capoeira Angola Palmares.

Embora já houvesse formado centenas de alunos em experiências anteriores, a partir da Associação Palmares, o trabalho de Mestre Nô se potencializa e atinge ainda maior abrangência. Para além das aulas ministradas na Bahia – que ultrapassam os limites físicos da Associação Palmares, chegando a rodas de rua e práticas em outros lugares em que acontece a capoeiragem –, Nô alcança representatividade efetiva nos planos nacional e internacional, vendo seus alunos como mestres, contramestres ou professores, em todas as regiões do país, bem como nos cinco continentes.

A Capoeira é prática que glosa as artes do corpo em luta, música, jogo e dança. Está enraizada na história do Brasil, em especial naquela dos afrodescendentes, que a criaram e recriaram como expressão de diferentes ritos oriundos de distintas partes da África. Como é comum aos processos culturais, a mescla é grande e incorpora também experiências ameríndias e mesmo de origem europeia – e, ainda que filtradas pelo africanismo, do Oriente Médio. A literatura sobre o tema é vasta e sua presença na vida universitária se faz notar, principalmente nas últimas três décadas, tanto na forma de pesquisas de todos os tipos, com destaque para teses e dissertações em várias áreas de conhecimento, quanto em atividades de ensino e extensão. Exemplar é a Universidade Federal de Santa Catarina, que conta há décadas com projetos de pesquisa e extensão (estes vinculados à cultura e educação populares) com e sobre Capoeira, além da presença de disciplina específica no currículo regular do curso de graduação em Educação Física.

A Capoeira, no entanto, não é matéria meramente acadêmica. Como exercício popular, possui seus próprios ritos e códigos. Há nela um saber e uma forma de transmissão que, embora não exclusivos, são-lhe bastante próprios. Trata-se, como outras formas de expressão corporal, de uma combinação entre mímesis e técnica, espontaneidade e racionalidade, calcadas em uma situação histórica e social específica, mas com desdobramentos que não necessariamente correspondem à origem. Neste sentido, embora sejam proficuamente estudadas, as práticas da Capoeira, ao comporem as artes do corpo, são objeto de conhecimento nem sempre conceitual, ainda que certamente não irracional. Da mesma forma, sua transmissão privilegiada se dá pela narrativa e pela aproximação mimética entre sujeito e objeto, como costuma acontecer nas experiências de fruição estética. É nesse quadro que Mestre Nô, cujo corpo garante um saber, se apresenta como um dos principais expoentes da história mais recente da Capoeira.

Saber oral que atualiza e sintetiza outros saberes uma vez escutados e materializados em narrativas, mas também em práticas corporais que passam de geração a geração. Isso é um pouco da Capoeira, prática cultural dos vencidos, mas não derrotados, na formação da nação brasileira, que precisa ser reconhecida e valorizada. A capoeira é patrimônio material e imaterial da nação e Mestre Nô uma de suas personificações mais importantes.

É muito importante a presença de Nô na UFSC desde o final dos anos 1980, em seminários, oficinas, batismos (ritual de pertencimento de novos capoeiras a um Grupo), patrono e inspiração de projetos, praticantes, professores, contramestres, mestres. Há respeito político e social no reconhecimento do Notório Saber junto ao grande Mestre de capoeiragem. Não só ele é celebrado com tal concessão, mas também a UFSC e o CED, em especial, ao concederem-lhe a honraria. Mais que isso, um marco no reconhecimento de que há algo de muito valor que escapa aos saberes universitários.

León, Espanha; Florianópolis, Praia do Campeche, março de 2016.

1 – Este texto incorpora o primeiro parecer sobre o processo, de Alexandre Fernandez Vaz, e que foi adotado, com poucos acréscimos, como documento final pela comissão do Centro de Ciências da Educação (CED) da UFSC, além de partes do ensaio Mestre Nô – capoeira na roda, capoeira na vida, de Fábio Machado Pinto, a ser brevemente publicado na revista Subtrópicos, da EDUFSC.

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