Universidade administrada (II) – exclusivo

Alexandre Fernandez Vaz

Se não fosse pelo sistema público, muitas áreas de formação como Física, Filosofia, Sociologia e Química estariam no Brasil extintas ou, pelo menos, moribundas, uma vez que formam para carreiras que costumam remunerar razoavelmente só os profissionais muito preparados, esperando-se deles, com frequência, no mínimo, a titulação de doutor. Geralmente só as encontramos nas universidades públicas, o que vale também para a pós-graduação. Um país precisa de físicos e matemáticos, assim como de pedagogos e advogados, médicos e cineastas. Requer saber de nanotecnologia e buscar sua autonomia científica, assim como pesquisar Filosofia Antiga e formar cientistas sociais e professores. Para tudo isso a pesquisa é essencial e os recursos para ela são oriundos, principalmente, como se sabe, do erário.

O sistema de ciência e tecnologia no Brasil está fortemente ligado às universidades, pelo menos a uma parte delas, notadamente federais, algumas estaduais e poucas privadas. Ele se assenta especialmente na pós-graduação e é bastante concêntrico, reunindo sob seus tentáculos tudo ou quase tudo que se relaciona à ciência e tecnologia, dos recursos para apoio à pesquisa aos convênios internacionais, da distribuição de bolsas à avaliação de periódicos. Finalmente, ocupa-se de valorizar simbolicamente e com recursos financeiros pesquisadores e programas com mestrado e doutorado. Como é retroalimentado, é fácil e difícil nele permanecer: os pesquisadores, na medida em que sobem na carreira, mantêm-se nele com mais comodidade; os programas de pós-graduação precisam afinar seus critérios e cumprir requisitos que, se supõe, refletem a qualidade do que produzem. Isso é em parte verdade, mas também gera uma corrida que não necessariamente é para que a pesquisa avance, mas para que metas formais sejam alcançadas.

Não é pequeno o investimento nesse processo que exige infraestrutura e formação de quadros. Apesar dos esforços, o êxito nem sempre é alcançado. A falta de equipamentos e a gestão deficiente, assim como a precária educação básica, são fatores que dificultam o desenvolvimento da pesquisa na Universidade. O corpo técnico nem sempre é qualificado e os pesquisadores apresentam limites que vão da falta de conhecimento da área em que atuam à redação claudicante no próprio idioma, passando pelo difícil trato com línguas estrangeiras (a “brasilidade” inventou uma elucidativa expressão para caracterizar a falta de conhecimento de outros idiomas, mesmo depois de anos de suposto estudo escolar: “inglês de colégio”). Sob este horizonte, impulsionado pela frenética busca de um lugar ao redor do sol internacional da ciência, colocam-se atualmente vários problemas para a produção acadêmica. Há uma procura por solucioná-los, mas talvez seja o caso de se pensar um pouco não exatamente a respeito de suas origens, mas sobre o que representam. Antes de seguir, lembro que para algumas áreas de conhecimento ou campos de aplicação, o número de artigos científicos e os veículos em que são publicados são requisitos para o julgamento dos pesquisadores, mas não são os únicos, nem os mais valorizados. Muitos cientistas são avaliados pelo alcance de metas dos projetos que desenvolvem em relação a problemas específicos.

Uma das questões que assombra pesquisadores, órgãos de fomento e periódicos científicos é o que tem sido chamado de más condutas acadêmicas. Entre elas destaca-se o plágio e o autoplágio. O primeiro é considerado trapaça porque viola o direito alheio, o segundo porque multiplica a produção de um pesquisador, fazendo com que ele alcance mais pontos nas olimpíadas acadêmicas, jogadas a cada dia mas com partidas finais a cada avaliação de produtividade.

O direito do autor sobre sua obra é, como demonstra Michel Schneider[1], um problema da modernidade, do nascimento do indivíduo, quando a propriedade privada se expande também para o campo das ideias e da obra. Se um certo individualismo está ausente antes da experiência moderna, é também porque pouco interesse havia na cópia como falsificação de autoria. O autor não era tão importante quanto a obra. Nós, modernos, mesmo que às vezes combatamos a ideia de gênio e digamos que o conhecimento é coletivo, somos muito ciosos do que entendemos ser criação própria. Um exemplo interessante desta questão pode ser encontrado na correspondência entre Walter Benjamin e Theodor W. Adorno[2], dois dos mais importantes intelectuais do século vinte. Onze anos mais velho do que aquele que viria a ser seu amigo, Benjamin escreve em 17 de julho de 1931 reclamando, muito educadamente, da omissão por parte de Adorno da devida alusão ao livro Origem do drama trágico alemão em seu texto A tarefa da Filosofia, referente à conferência inaugural como Professor da Universidade de Frankfurt. Benjamin aceita a promessa de Adorno para que o mencione em um agradecimento quando da publicação da obra, e a contenda termina de forma amigável.

O autoplágio diz respeito a uma outra ordem de coisas. Repetir resultados, principalmente, caracteriza plagiar a si mesmo. Em tempos de diferentes plataformas e produção em rede, retomar questões e expô-las novamente, em outro contexto, é prática que margeia o autoplágio. Considera-se que há um limite para a coincidência entre os trabalhos, algo similar à detecção do plágio. Mas como depurar exatamente o que é igual, se a organização das palavras e as distintas formulações podem levar a um outro texto, ainda que também possam ser apenas máscara do antes divulgado? Há periódicos que, por via das dúvidas, não aceitam material já publicado em anais de congresso, mesmo que haja sido em versão preliminar. Retomar uma ideia colocando-a em novo contexto reflexivo, agregando-lhe às vezes a possibilidade de haver sido debatida em um congresso, parece estar se tornando impossível. Porque trará mais pontos para o autor na lista de publicações. Porque interessa pouco ou quase nada a reflexão ou análise exposta, e muito ou apenas a quantidade de trabalhos “originais” publicados. Pesquisar para publicar em lugar de publicar porque se pesquisou.

Montevidéu, Uruguai; Sul da Ilha de Santa Catarina, dezembro de 2014.

[1] Ladrões de palavras: ensaio sobre o plágio, a psicanálise e o pensamento. Tradução de Luiz Fernando P. N. Franco. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990, 503 p. Tradução de Luiz Fernando P. N. Franco (Coleção Repertórios). Um comentário sobre o livro, escrito por mim e por Michelle Carreirão Gonçalves, pode ser encontrado na Revista Brasileira de Educação.

[2] ADORNO, THEODOR W.; BENJAMIN, W. Correspondência, 1928-1940/Adorno-Benjamin. São Paulo, UNESP, 2012. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo. Fiz um comentário sobre o livro na revista Ideias.

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