Uma questão de perspectiva – exclusivo

Evelyn de Almeida Orlando

Recentemente resolvi retomar um antigo hobby, como uma estratégia para escapar do ritmo mecânico e intenso do trabalho que por vezes nos faz funcionar quase no piloto automático, sem perceber as nuances do tempo, de ação, do olhar que nos orienta. De volta à fotografia, percebi que tão importante quanto a técnica é o olhar. Algo que não se aprende simplesmente pela mera transmissão, mas se desenvolve pelo exercício e com o tempo. Este é o grande diferencial entre inúmeros excelentes fotógrafos. Mesmo quando não tiradas por imponentes câmeras ou trabalhadas em edições refinadas, o que faz com que algumas fotos se destaquem umas das outras é a sensibilidade do olhar do fotógrafo. Uma nova percepção que implica em ir além do óbvio, do que está posto. Implica em olhar os fatos, os sujeitos, os objetos em suas particularidades e de diferentes modos, por outros ângulos, formando novas tessituras do vivido.

Retomar a fotografia tornou-se um exercício para o olhar. Um exercício que começou como fuga do trabalho, mas que inevitavelmente o atingiu de forma direta. Em tempos de votação, as aulas na pós-graduação vinham acontecendo da forma programada até que uma aluna me pediu que comentasse sobre minha posição nessas eleições. Relutante inicialmente, resolvi abrir o espaço da aula para discutirmos política, projetos de governo, nossas condições de alunos e professores de ensino superior, os planos de carreira, e assim se passaram quase duas horas da aula. A discussão acalorada mobilizou até aqueles menos dispostos a participar da aula inicialmente. Algumas questões foram esclarecidas, outras postas na mesa para reflexão; críticas foram feitas, alguns arriscaram alternativas para alguns problemas sociais. Nesse contexto, dei-me conta de que isso também era educação. A tentativa de retomar o texto se mostrou absolutamente sem sentido, foi infrutífera.  Naquele dia, outras questões tão relevantes quanto o currículo programado – arriscaria mesmo a dizer, bem mais importantes – pediam passagem.

A experiência acalorada e colaborativa não planejada em sala de aula me fez relembrar que educar e formar pessoas passa por perceber que ao mesmo tempo em que reproduzimos cultura, também a produzimos. E produzimos quando estimulamos nossos alunos e orientandos a enxergar as coisas de outra maneira, com uma lente mais ampliada. Produzimos cultura quando saímos do âmbito das ações mecânicas e passamos às ações coerentes com um pensamento, com uma visão de mundo. Produzimos cultura quando tais ações são impulsionadas por um sentimento de pertença, de contribuição com o seu grupo, quando mantemos acesas na memória as nossas heranças e tradições ao mesmo tempo em que fazemos frente ao nosso tempo e imprimimos nele a nossa marca como personagens da história. 

Que cultura pode a educação produzir nesse contexto social de mudança política? Talvez seja tempo de perceber que parte significativa de nossos problemas sociais passa por questões de educação e não apenas pela educação escolar, mas por um conceito de educação que vai além da escolarização e das regras de civilidade como sinônimos de fino trato. Passa pelo bom senso e pela responsabilidade social. Aí, podemos pensar em práticas educativas que formam o sujeito para olhar além de si e se perceber como parte de algo maior. 

Como membros de uma sociedade não há nada que aconteça com o grupo que não afete o indivíduo pessoalmente. Posso citar alguns problemas sociais que poderiam ser minimizados sensivelmente apenas pela formação de uma consciência social. Dentre eles, destaco apenas o trânsito, a falta de alimentos, a falta de água, o excesso de lixo produzido. Boa parte desses problemas têm suas raízes ou são ampliados pela falta de educação social da população.

As regras bom senso no trânsito são ignoradas completamente em troca de um minuto ou dois de vantagem. A lei da vantagem é muito próxima à da esperteza que traz como mote o êxito de um sobre os demais. No trânsito, isso se acentua nos intermináveis engarrafamentos, muitas vezes sem motivo algum. A falta de alimento em um país como o Brasil é injustificável. Todavia, ainda há pessoas que passam fome ao mesmo tempo em que desperdiçamos toneladas de alimento, jogando-as no lixo ao invés de aproveitá-las ou simplesmente doá-las. O lixo que produzimos, por sua vez, não é problema nosso. É problema do governo. Essa transferência é interessante porque exime as pessoas de sua responsabilidade pela manutenção da cidade e pelas mazelas que essa falta de manutenção causa, como por exemplo, as enchentes em dias de chuva ocasionadas não porque o volume de água é excessivo, mas porque os bueiros estão entupidos com lixo. Por fim, nesse quadro, chamo ainda a atenção para a falta de cuidado com a água, novamente relacionada ao desperdício, mesmo diante da iminência da falta d’água. Há quem argumente que esse não é um problema que afeta o país nesse momento, mas apenas o estado de São Paulo, e esse é exatamente, o ponto que gostaria de destacar; a falta de solidariedade e de sentimento de pertença de grupo. O problema de São Paulo pode vir a se tornar um problema do Rio de Janeiro ou do Espírito Santo em breve. Mas até lá é apenas uma preocupação dos paulistanos.

É preciso ampliarmos o nosso conceito de educação e formar consciências seja na escola básica, na graduação ou mesmo na pós-graduação. Educar o olhar para que se passe a enxergar o entorno de outra forma. Não é porque podemos fazer determinadas coisas que devemos fazê-las. Não é porque compramos nosso carro que podemos conduzi-lo como bem entendermos, não é porque pagamos pela comida e pela água que podemos desperdiçá-las, nem tampouco pagar a taxa de lixo permite nos isentarmos de contribuir com a limpeza da cidade.  Há uma educação para o bom senso que parece estarmos nos distanciando. Ou seria da ética que estamos nos afastando? Na sua Ética à Nicômaco, Aristóteles comparava a ética ao bom senso. Para o filósofo o bom senso “é o elemento central da conduta ética, uma capacidade virtuosa de achar o meio termo e distinguir a ação correta”.

Talvez a ética seja um bom treino para recolocar em perspectiva o olhar que orienta nossas práticas educativas. Afinal, qual o sentido social do que fazemos? Como o que produzimos reverbera na sociedade em que vivemos? Que cultura é essa que estamos produzindo ou reproduzindo?

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