Uma imagem duradoura – (outra vez) Passagens, de Walter Benjamin

Alexandre Fernandez Vaz

O primeiro semestre viu chegar ao mercado editorial brasileiro, depois de longo hiato, a segunda edição de um livro muito especial. Refiro-me à monumental obra Passagens, de Walter Benjamin, publicado pela Editora da Universidade Federal de Minas Gerais. Em três volumes, com bonito acabamento, a obra fica mais fácil de ser manuseada do que sua versão anterior, também publicada pela EDUFMG em colaboração com a Imprensa Oficial do estado de São Paulo. A edição brasileira Das Passagen-Werk foi cuidadosamente preparada por uma equipe coordenada por Willy Bolle, com a colaboração de Olgária Matos.

O volume foi originalmente dividido pelo editor alemão em quatro partes, sendo a mais extensa delas intitulada Notas e materiais. Seguindo algumas indicações do próprio autor, Rolf Tiedemann separou essas anotações por temáticas identificadas por letras maiúsculas e minúsculas, compondo temas aparentemente inusitados como Ócio e ociosidade, Marx, O colecionar, A fotografia. As abundantes notas do organizador brasileiro facilitam a leitura e o acompanhamento dos argumentos. Da mesma forma, a leitura das Exposés, que apresentam o plano geral da Obra, escritas em 1935 e 1939, bem como das notas introdutórias a cada uma das seções, da introdução de Tiedemann e dos estudos incorporados à edição brasileira, são de grande valia para o estudo de Passagens.

Nada disso, no entanto, é capaz de substituir o encantamento de deixar-se levar pela leitura atenta desses textos algo labirínticos que cruzam a história social e o ensaio, a filosofia, a sociologia da cultura e o ideal revolucionário. Pode ser um prazer muito grande mimetizar-se com a montagem historiográfica que fala de Marx, Baudelaire e Fourier, ao mesmo tempo em que se refere ao ferro, aos espelhos, ao vidro e às nascentes práticas da cultura de massas.

Passagens é um gigantesco e complexo conjunto de anotações em alemão e francês (mas também em inglês e espanhol) que pretendiam, na sua própria estrutura, reconstruir uma arqueologia da modernidade tal como ela se apresentava na cidade de Paris, a capital do século XIX, como reza o título das Exposés. O Autor tomou uma infinidade de fragmentos, principalmente do século que lhe foi anterior – textos literários, propagandas, fotos, planos, ilustrações diversas etc. – para pensar a cidade moderna em seus monumentos destinados às multidões: as galerias, grandes corredores privados, mas destinados à passagem pública e à exposição de mercadorias, de um si mesmo, de uma nova forma de ser que faz mesclar espaço público e consumo. Se a mirada está no século XIX, o ponto de vista é o dos anos vinte e trinta do século seguinte e por isso em Benjamin se encontram o marxismo, o surrealismo e a tentativa de materializar uma escrita que corresponda à montagem cinematográfica. Quando perambulava por Paris como um errante flâneur, as galerias, antepassados dos contemporâneos shopping centers, já estão em decadência, ainda que o fetichismo do espetáculo mercantil continue seduzindo, conformando uma espécie de inconsciente onírico naquela que é uma casa de sonhos erigida com ferro e vidro, oferecendo plenitude à exposição e uma transparência que simultaneamente revela e oculta, embaralhando as noções de público e privado que mal acabavam de tentar se firmar. As luzes da cidade e as iluminações domésticas não apenas duelam, mas se conjugam numa continuidade que torna cúmplice o espaço interior e a rua.

Benjamin preparou a pesquisa sobre as Passagensdurante muitos anos, desde 1927 até sua prematura morte em 1940, resultado de um suicídio em uma fronteira entre França e Espanha, a caminho dos Estados Unidos da América, tentando escapar do Nacional-socialismo. Se lá tivesse alcançado o destino previsto, encontraria seu amigo, interlocutor, discípulo e crítico Theodor W. Adorno e o diretor do Instituto de Pesquisa Social, embrião da depois conhecida Escola de Frankfurt, Max Horkheimer, responsável por uma bolsa que lhe garantira o precário sustento nos anos de exílio em Paris. É nesta que Benjamin vivera de forma mais assídua, mas não sem percalços (com estadias na casa de Bertold Brecht, na Dinamarca, recusas a viajar para a Palestina, onde Gerschon Scholen o esperava…), desde o início dos anos 1930. Na América teria encontrado também sua amiga, a judia e alemã Hannah Arendt, principal divulgadora de sua obra naquele país, depositária inicial de um de seus principais escritos, as Teses sobre Filosofia da História, e autora de um dos mais belos textos já escritos sobre Benjamin, presente, não sem motivos, em seu livro “Homens em tempos sombrios”. As Teses são o último texto de Benjamin que conhecemos e constituem uma espécie de excurso ou introdução metodológica a Passagens. Elas são parte dos fragmentos que nos foram dados a conhecer antes da publicação da Obra inacabada e expressam teoricamente aquilo que se materializa como método nas anotações: uma crítica radical ao progresso transfigurado na cultura de massas, ao tomá-lo como índice da modernidade. É nesta que Benjamin verá a dialética entre progresso e regressão como raiz material e onírica do nosso tempo. O movimento dialético muito particular já se deixara mostrar em outros ensaios também conhecidos e que compuseram o projeto das Passagens, tanto de forma mais direta, como as duas Exposés já citadas, quanto de maneira mais eletiva, como o conhecido ensaio sobre a reprodutibilidade técnica da obra de arte, no qual Benjamin se ocupa principalmente do cinema – de conformação estética própria do século XX – para demonstrar as novas condições de produção artística sob o declínio da aura e a profanação do culto tradicional ao objeto. É com esse intuito que ele colocará em debate, em sentido muito específico e nada panfletário, a politização da arte contra a estetização da política, prática esta que ele atribuía ao fascismo.

A modernidade lida por Benjamin, e que emerge em Passagens, não é só de Paris, mas também de outras cidades. Para aquele que nasceu em uma família abastada da comunidade judaica berlinense, a cidade é um mundo natural. É nessa segunda natureza que o sujeito se encontra com sua alteridade múltipla, com os andarilhos citadinos, estejam eles em Paris, Berlim, Moscou, Marselha, cidades sobre as quais Benjamin escreveu e com cujos personagens se deparou, tanto nos materiais do século dezenove tomados como fontes, quanto na sua própria experiência ao flanar pelas ruas, galerias, cafés, teatros e outros interiores: revolucionários, vagabundos, escroques, burgueses, crianças e mulheres, muitas, babás, namoradas, amigas, intelectuais, prostitutas.

Talvez um dos aspectos mais interessantes de Passagens, assim como de boa parte da obra de Benjamin, seja sua refinada capacidade de investigar a história de um ponto de vista materialista, estendendo suas análises para as novas formas de subjetivação que vão se configurando. Se o ferro e o vidro – com sua superfície lisa e transparente – dão o tom das grandes vigas, paredes, chãos, tetos e vitrines que agregam e fazem emergir as mercadorias, é porque também uma nova sensibilidade vai se formando no sujeito inseguro e cindido da modernidade. É este que tenta, a todo o custo, resistir aos processos de despersonalização ao procurar a fotografia de rosto, a assinatura nas monogramas, as possíveis marcas que individualizam e que demarcam a posse e a moradia das casas burguesas. É este que procura, ao mesmo tempo, expor-se na rua, mas refugiar-se nos interiores. Algo muito semelhante Benjamin já havia feito ao descortinar a história cultural dos brinquedos, mostrando como uma sensibilidade singular em relação à infância se desenvolve na medida em que as formas de produção e reprodução desses objetos de culto infantil se diferenciam com o progresso tecnológico e a organização racional do trabalho.

Walter Benjamin não pôde ver o desenvolvimento da realidade virtual e de outras formas de organização e desvario do inconsciente do nosso tempo. Talvez a leitura de Passagens nos autorize a tentar ler a experiência do presente como um movimento que não mudou tanto do século XIX para hoje, mas que, certamente, acelerou-se de maneira brutal, oferecendo-nos novos materiais e outras seduções. Benjamin não sobreviveu à experiência mais dura da catástrofe que ele antecipara em seus ensaios, algo que lhe faria ver ainda mais dascontradições da modernidade que ele vislumbrou.  Que a imaginação dialética mais refinada desse Mestre nos seja, então, inspiração para uma leitura crítica do presente, necessária em tempos como os de hoje, incertos e tão apologéticos de fetichismos de toda espécie.


Este texto, com pequenas modificações, foi publicado originalmente sob o título Uma imagem duradoura (afinal) Passagens, de Walter Benjamin no suplemento DC Cultura, do Diário Catarinense, p. 8, novembro de 2006.

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