Um metro e meio: crônica para tempos distópicos

Maria Cristina Soares de Gouvea*

Quando as coisas eram normais. A frase, num parágrafo qualquer de um livro de Patti Smith, paralisa-me. Retiro os olhos do livro e repito alto para ninguém além de que eu sou, de quem eu fui, de que meu insisto em ser: Quando as coisas eram normais.

A frase, aparentemente banal, me tira do deslizar da autora por cidades vazias, hotéis baratos, paisagens tristes, encontro com vagabundos solitários, registrados em fotos Polaroid e me lança no meu não lugar. Habito um não lugar, fora do tempo e espaço, cheirando a água sanitária, álcool gel, bolor e mofo. Lugar do som da TV ligada a repetir a cada dia números que se acumulam. Lugar de gosto de comida de geladeira. Lugar da visão de objetos e toque de superfícies acumuladas ao longo de um outro tempo.

O tempo para, mas continua, puro, reduzido a sua essência. Lentamente ele deixa suas marcas no meu corpo que engorda, no cabelo que embranquece, cresce, junto com minhas unhas. Meu corpo é agora o único objeto da ação do tempo.

A sucessão dos dias, a agenda intocada que anuncia e denuncia um ano que não começou, nos dias que se passam num abril que se insiste primaveril. O tratamento do canal do dente, a mamografia anual, o IPVA do carro empoeirado de tanque cheio, tudo repousa debaixo de uma fina poeira que pouco se acumula, diante da ausência dos carros que não mais passam velozes na avenida abaixo de minha janela.

Não mais os ruídos das freiadas, buzinas, vozes, eventuais gritos e risos de bêbados que atravessam a madrugada. Minha paisagem sonora se silencia e se apaga, desaparece do meu cotidiano. Repito para mim mesma, marcando cada sílaba: CO-TI-DI-A-NO, como se ao pronunciá-la, fosse possível voltar a um tempo em que a palavra teve sentido. O passar dos dias marca não apenas o tempo da vida que se inscreve em meu corpo, mas a morte que habita outros corpos, cada vez mais próximos do meu.

Ela se expressa em números crescentes, imagens de caixões, covas, carros de ambulância em cidades desconhecidas. Corpos que, quando vivos, nunca se tocaram, mas que experimentaram um destino comum.

Os corpos vivos também não mais se tocam. Um metro e meio marca a distância de nossos afetos, dores, aflições, desejos. Um metro e meio marca a segurança e proteção de nossos afetos.

Ainda assim, os afetos resistem e insistem, os corpos não mais se tocam, mas vozes e imagens se encontram em redes magnéticas, onde compartilham-se músicas, livros, filmes, receitas de bolo, notícias da TV, de redes sociais, aflições e prazeres idênticos de corpos tão distintos.

Partilhamos como nunca, com intensidade febril, todo um container virtual do tamanho de um planeta, acumulado ao longo dos séculos, junto com o que se faz agora, no mesmo instante que aqui escrevo para me entender, para que outros se entendam, para que nos entendamos.

Partilhamos como nunca, com intensidade febril, números de contas bancárias, de financiamento coletivo solidário, que narram as dores e perdas de corpos distantes, ainda que geograficamente tão próximos, cuja história tanto sabemos, ainda que teimemos em ignorá-la.

Quando as coisas eram normais. Será que algum dia foram normais? Será que um dia virão a ser? Ou a normalidade é o que temos hoje, o tempo, despido de tudo a inscrever- se em bilhões de corpos, silenciosamente.

Não há volta, nos dizem. Queremos acreditar que a frase indica a utopia de um mundo melhor, livre de nossa voracidade acumulativa de geringonças, de uma humanidade que se materializa em bolsas, sapatos, vestidos e gravatas, hoje envoltos em plásticos empoeirados.

Ou, como nos lembra nossa história recente, nada aprendemos com Auschwitz. Restarão corpos de dinossauros gordos a se movimentar, lentos, numa paisagem despovoada, de torres vazias, anúncios de neon apagados.

Quando as coisas serão normais..

*Professora da Faculdade de Educação da UFMG


Fonte da imagem: Sasha Freemind / Unsplash

 

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